terça-feira, 10 de julho de 2012

La Piel Que Habito (2011)

Almodóvar, nome maior da cinematografia espanhola, não é um cineasta vulgar. Autor num tempo de realizadores, as dinâmicas e romances insólitos entre protagonistas são peça central da sua obra. Em La Piel Que Habito não se quebra a regra, aliando-se a violência ao sexo, o masculino ao feminino naquela que será, porventura, a obra mais artística e perturbadora do passado recente do espanhol. Em jeito quase hitchcockiano, Almodóvar conduz o seu público através de um labirinto meticulosamente construído dentro da estória, controlando na perfeição o tempo em que cada pedaço de informação é divulgado.

Baseado em Mygale (Tarântula) de Thierry Jonquet, a fita assume desde cedo contornos de thriller psicossexual. A rapariga trancada num quarto, prisioneira de um Frankenstein moderno, ajuda a essa formulação. Presume-se que Vera (Elena Anaya) é amante do rico médico dono da propriedade, Robert (Antonio Banderas), mesmo que, em retrospectiva, nada nos seja mostrado nesse sentido. Marilia (Marisa Paredes), a governanta é cúmplice na trama, por motivos na altura desconhecidos. O que levaria alguém, ainda para mais uma mulher, a manter trancada dentro de um quarto artisticamente minimalista uma jovem aparentemente inocente? Através de flashbacks, confidências e sonhos vai-se descobrindo o passado e os segredos de cada personagem, os acontecimentos em comum entre eles e a relação que são forçados a ter uns com os outros. Vera nem sempre foi Vera, Robert não abomina as suas criações/aberrações, Marilia tem demasiado a esconder da sua vida. Almodóvar constrói um thriller competente, fazendo valer os seus galões de brilhante realizador, sobretudo, nos primeiros 40 minutos da fita. O acumular da tensão é notável, a tentativa de suicídio, o retorno do filho pródigo, a faísca que, ardendo, impulsiona a estória. Assentar um filme numa sensação de desconforto que nunca chega a desaparecer não é fácil. Nem com a chegada de Zeca, El Tigre, personagem insólita, a aura se dissipa. O melhor que o ladrão vestido de felídeo selvagem consegue fazer é arrancar alguns risos nervosos à audiência antes de também ele contribuir para a tensão vivida naquela casa.


Almodóvar volta a assumir-se como um dos melhores realizador da actualidade. Capaz de tirar o melhor dos seus actores, capta com a sua câmara o que de mais verdadeiro as suas personagens conseguem transmitir. Elena Anaya, deslumbrante, e Jan Cornet no papel de Vicente complementam-se bem e entregam interpretações de enorme qualidade. Até Banderas surge em bom nível, viril e sexual como de costume, encarnando de forma credível o cientista louco que lhe coube no filme. Entre o descontrolo e a frieza, a musa masculina do cineasta espanhol vai levando a sua avante, calando, por momentos, aqueles que o acusam de vir a perder o fulgor de outros tempos. Os secundários, mais discretos, não se afastam da competência dos principais. Todos eles vão vivendo, convivendo e sobrevivendo numa Toledo quente e quase turística, a ritmos diferentes que, infelizmente para uns, felizmente para outros, se cruzam, formando e desfazendo triângulos de vértices e lados diferentes. Aliás, a figura geométrica é mesmo conceito recorrente na fita, pautando as relações entre as personagens, guiando dinâmicas entre trios, raramente surgindo em cena mais do que três figuras em simultâneo.

Longe do dramalhão, La Piel Que Habito aproxima-se mais do romance de faca e alguidar. Mas uma faca e alguidar cirúrgicos. Tudo no filme tem propósito. Nada aparece por acaso. Almodóvar esperou quase trinta anos para apresentar a sua obra mais artística e bizarra. Em campos hitchcockianos o espanhol guia-se bem, mantendo algumas das características mais marcantes que já nos habituamos a ver no seu cinema. Estética visual vibrante e rica (a direcção de fotografia é soberba), mulheres fortes, mesmo que não nasçam assim, romances estranhos e arriscados. O rasto que fica atrás é de sangue e sofrimento, o futuro é incerto. O sadismo e o voyeurismo como objectos de estudo do cinema. Deste lado da tela, nós, público, que observamos personagens que nos são desconhecidas; do outro, Robert, que observa num ecrã gigante oportunamente montado no seu quarto uma mulher que ele mesmo criou mas que a cada dia que passa vai sabendo menos quem é. Pode nem ser o melhor trabalho de Almodóvar, mas é um dos que mais prazer dá ver.


Título Original: La Piel Que Habito (Espanha, 2011)
Realizador: Pedro Almodóvar
Argumento: Pedro Almodóvar, Agustín Almodóvar (baseado no romance de Thierry Jonquet)
Intérpretes: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes, Jan Cornet, Roberto Álamo, Blanca Suárez, Eduard Fernández
Música: Alberto Iglesias
Fotografia: José Luis Alcaine
Género: Drama, Terror, Thriller
Duração: 117 minutos


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