Quando BATMAN BEGINS estreou no já distante ano de 2005 o natural para os fãs dos comics foi recebê-lo com receio. As adaptações de Joel Schumacher, feitas uma década antes, tinham destruído grande parte da imagem da publicação e da personagem, fazendo com que nem a reputação de Christopher Nolan como artista de thrillers psicológicos fosse capaz de retirar o pé que os aficionados do homem-morcego mantinham atrás. Filme visto e considerações tomadas, havia que rectificar a posição e admitir o erro de julgamento: Batman Begins mostrava-se capaz de se sustentar por mérito próprio, revitalizando uma franquia que há muito se julgava sem salvamento.
Não que o filme fosse brilhante, porque não o era. Tinha erros e defeitos, buracos e problemas de ritmo. Mas, pelo menos, devolvia a Batman o seu lado mais negro, empurrando-o para terrenos próximos dos de anti-herói. Melhor, ridicularizava as gentes de lycra que inundavam o mercado do género vindas do lado da Marvel e estabelecia os motivos que levavam alguém que se mascarava de morcego a espancar criminosos em becos e vielas escuras durante as horas nocturnas. Aqui é o próprio Bruce Wayne, o rosto visível do herói, que afirma que o Batman tem problemas («Well, a guy who dresses up like a bat clearly has issues.»). A morte dos pais deixou-o amargurado, ansiando por uma retribuição que o seu rígido código moral não lhe permite obter. O legado de ser um Wayne, pedra basilar da organização social de Gotham, não ajudou à situação, colocando sobre os ombros de uma criança traumatizada um império multimilionário e o compromisso social que os seus pais tinham assumido para com a população empobrecida de uma cidade dominada pelo crime e corrupção. Daí o seu desaparecimento durante sete anos, a sua teima em enfrentar os criminosos no seu próprio jogo, a vontade de limpar Gotham dos corrompidos e corruptores. A intenção é boa, os métodos é que poderão não ser os melhores.
Nolan acabou por se revelar uma boa escolha para a cadeira de realizador. Em Batman Begins o britânico continua na linha das patologias e traumas do foro psicológico que caracterizou de certa forma as suas obras anteriores (Memento e Insomnia) e aborda o tema da vingança que se tornaria algo recorrente no seu trabalho. A sua construção de Gotham, elevada quase ao estatuto de personagem, afastando-a da cidade expressionista erigida por Burton e da metrópole de outros tempos mesclada com a Tóquio dos grandes néons de Schumacher, ajudou à aceitação geral da sua visão por parte do público. Mais importante, Nolan soube rodear-se das pessoas certas. A banda sonora composta por James Newton Howard e Hans Zimmer, das mais memoráveis do passado recente, contribui para a dimensão mais épica do filme (apesar de tudo, é preciso não esquecer que Batman Begins continua a tratar-se de um filme de super-heróis) e a fotografia de Wally Pfister, bastante competente, nomeada ao Oscar da categoria, suporta a decisão de Nolan de utilizar filme em detrimento de meios de filmagem digitais. A direcção de arte e a edição também não fogem à norma, mesmo com os problemas de ritmo e encadeamento de cenas já mencionados. Noutro nível, o elenco. Christian Bale elimina a ideia de que os actores eram escolhidos para o papel de homem-morcego pelo seu queixo, conseguindo emprestar à personagem alguma profundidade e complexidade que há muito já se pedia em adaptações anteriores da estória. O galês, que se move pelos cenários de capa preta, vociferando ameaças e instruções em voz rouca e nem sempre facilmente audível, conseguiu o que nenhum outro actor havia conseguido antes: preencher o fato de herói com corpo e talento. A Michael Keaton faltava o físico, a Clooney e Val Kilmer as capacidade de representação (o ambiente geral das produções em que se viram envolvidos também não os ajudou). Não considerando, é claro, Adam West, autor de um Batman demasiado camp que, felizmente, não passou da década de 60. Michael Caine aparece bem como Alfred, o mordomo sempre fiel da família Wayne, e Gary Oldman não desilude como Jim Gordon. A escolha de Scarecrow e Ra's Al Ghul como antagonistas surpreendeu. Longe de serem os vilões mais populares do universo literário de Batman, pelo menos junto do público mais novo, a sua inclusão na película resulta de forma inesperada. Cillian Murphy, o irlandês, dá um bom Jonathan Crane, multiplicando-se em psicoses. Liam Neeson e Ken Watanabe dividem-se como o mestre criminal líder da Liga das Sombras, reforçando a imagem de Ra's Al Ghul mais como ideal do que como pessoa. Eliminam-se os misticismos da personagem e está criado um dos melhores vilões da última década, terrorista social vítima de uma noção retorcida de justiça e sociedade. À semelhança de Batman, as suas intenções são boas, os métodos é que podem não ser os melhores. Sobram Morgan Freeman como Lucius Fox, um dos favoritos dos fãs, Tom Wilkinson como Carmine Falcone, o chefe da máfia local, e Mark Boone Junior, Rutger Hauer e Rade Serbedzija (há quem não se lembre do Boris, the Blade de Snatch.?) em papéis secundários quase sem expressão. A única nota negativa tem de ir para a Rachel Dawes de Katie Holmes, tapada por Alfred na função de consciência de Bruce Wayne e algo desajustada no papel de interesse amoroso do bilionário justiceiro.
Batman Begins é interessante e marcou o início de uma das séries cinematográficas mais especuladas e queridas tanto pelo público, como pela crítica, das duas últimas décadas. O sucesso residiu na indissociação de Bruce Wayne do seu alter-ego mascarado e na aceitação dos traumas da(s) vítima(s) como fio condutor da trama. Nas visitas anteriores à estória era fácil para Bruce Wayne conciliar as suas relações amorosas com o seu part-time clandestino, passando a imagem de galã inveterado. Aqui, Bruce falha para com Rachel, e tem de escolher, no final, entre a rapariga e a cidade que precisa de salvar. A imagem de playboy, essa, continua a ser passada, mas para Gotham e quem se encontra do lado de fora do círculo íntimo de Wayne. Quem o conhece sabe que ele não é assim. O que nos leva a questionar se será Batman o alter-ego de Bruce, ou exactamente o oposto. Desde Burton que o ambiente de Batman não era tão negro. A esperança rareia e, por vezes, aparece nos sítios onde menos se espera. Queimar uma mansão pode parecer exagerado, quase como andar a combater o crime nos telhados de uma cidade vestido de morcego, mas resulta para o efeito pretendido por Nolan. Começa lento, com flashbacks de um jovem Bruce e seus pais, o canónico assassinato à saída da ópera, a reclusão numa prisão oriental, tentativa de compreender a mente do criminoso, mas depressa acelera, ganhando ímpeto e vigor. O melhor ainda estaria para vir, mas os indicadores dados por Batman Begins já permitiam tirar algumas conclusões sobre a franquia. Permitiam também algumas perguntas que ficariam por responder. Será Batman mais perigoso para Gotham do que os vilões que enfrenta? Serão os seus métodos legítimos? Cairá o justiceiro mascarado em desgraça por não saber quando parar? Algumas seriam respondidas no capítulo seguinte, outras ficariam suspensas no limbo, entre planos de uma cidade cada vez mais limpa e sequências de acção grandiosas, quase megalómanas. Para os fãs, Batman Begins continuava a ser um presente envenenado, sendo incerto que as suas possíveis continuações mantivessem o nível ou conseguissem mesmo elevar a fasquia. 7 anos volvidos, sabemos a resposta. O que se lhe seguiu foi algo sem precedentes, um fenómeno do marketing sustentado por qualidade cinematográfica acima da média, algo raramente observado. Aí, o último a rir seria mesmo aquele que riria melhor.
Realizador: Christopher Nolan
Argumento: Christopher Nolan, David S. Goyer (baseado nas personagens de Bob Kane)
Intérpretes: Christian Bale, Michael Caine, Liam Neeson, Katie Holmes, Cillian Murphy, Ken Watanabe e Morgan Freeman
Música: James Newton Howard, Hans Zimmer
Fotografia: Wally Pfister
Género: Acção, Crime, Drama, Fantasia
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