Não sai aos seus, mas degenera.
Há qualquer coisa neste TOTAL RECALL que nunca chega a bater certo. Durante duas horas é constante a sensação de que algo de errado se passa no ecrã. Pior ainda será para quem tenha bem presente na memória o Total Recall de há duas décadas, inacreditavelmente superior a este e bem mais próximo ao conto original de Philip K. Dick que lhe serviu de inspiração. Adaptadas da mesma fonte, são mais as diferenças que separam as duas películas do que as semelhanças que as unem.
Da estória, então, nem se fala. Numa época em que a grande maioria da superfície da Terra foi destruída por uma guerra química, a vida faz-se entre Londres e a Austrália. A primeira continua a metrópole, a segunda colónia habitada por trabalhadores mal pagos e gente de gosto e origem duvidosa. Doug Quaid (Colin Farrell) é um dos que viaja diariamente entre os dois continentes, residente nos bairros de lata da Colónia e trabalhador numa das fábricas londrinas. A sua rotina repete-se, mas Quaid começa a sentir que lhe falta algo. Vítima de um pesadelo recorrente com uma mulher que não é a sua esposa, decide visitar a Rekall, empresa que implanta memórias na mente dos seus clientes, esbatendo permanentemente a linha que separa a realidade da fantasia. À imagem do primeiro, a memória e a percepção da realidade são temas centrais neste Total Recall; não chegam a ser convenientemente explorados, mas estão lá. A vida dupla, a opressão do governo, a sobrepopulação também. Afinal de contas, continua a ser uma adaptação, embora liberal, de uma obra de Philip K. Dick, e o escritor nunca se refreou de escrever ficção-científica com fundo social. É de lamentar a direcção que a equipa de argumentistas decidiu dar à obra, mas aí o assunto já será outro. A direcção de Len Wiseman pauta-se pelos mesmos princípios de mediocridade, desperdiçando planos e enquadramentos em movimentos de câmara absurdos. As cenas de fuga pelas cidades parecem saídas de um videojogo de plataformas, tal como a sequência em que Quaid despacha 10 polícias, obsoleta até para o meio em que foi inspirada.
Sobra pouco para aproveitar e recordar neste Total Recall. Perderam-se boas ideias na construcção das cidades, mesmo que fossem óbvias maquetas de outras vistas em filmes do género. A favela da Colónia, inspirada na L.A. multicultural de Blade Runner, perde-se em planos-sequência de perseguições e panorâmicas inseridas nos momentos errados. Já Londres, branca, inspirada na estética utópica da cidade-modelo futurista, quase retirada de um fotograma de I, Robot, construída em altitude, nunca é merecedora de particular destaque na película. As duas ligadas por um elevador sugestivamente chamado A Queda, que, também sugestivamente, passa pelo núcleo do planeta. As ideias mal aproveitadas precipitam-se umas atrás das outras e deixam um gosto amargo no espectador. Não é de estranhar a meia-dúzia de referências ao antecessor, o outro Recall, colocadas à pressão no filme e gritantes na denúncia da sua origem - a prostituta de três mamas, a senhora gorda à frente de Quaid na alfândega, cópia a papel químico do disfarce do outro Quaid para entrar em Marte, a referência ao Planeta Vermelho. O protagonista chega a ser melhor, mas mesmo isso é contrabalançado por duas péssimas escolhas nos papéis femininos. E nem Bill Nighy ou Bryan Cranston, figuras maiores em lados opostos, parecem dispostos a salvar a fita.
Há duas décadas Verhoeven fez mais com, teoricamente, menos à disposição. Já bem dentro de um novo milénio, o objectivo parece passar mais por mostrar os avanços tecnológicos alcançados na indústria do que fazer justiça à estória. Para isso, mais vale ir a Marte.
Realizador: Len Wiseman
Argumento: Kurt Wimmer, Mark Bomback, Ronald Shusett, Dan O'Bannon, Jon Povill (baseado no conto de Philip K. Dick)
Intérpretes: Colin Farrell, Kate Beckingsale, Jessica Biel, Bryan Cranston, Bill Nighy
Música: Harry Gregson-Williams
Fotografia: Paul Cameron
Género: Acção, Aventura, Ficção Científica
Duração: 118 minutos
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