Encontro-me com o João, um dos amigos locais, numa cervejaria de esquina, pouco visível ao transeunte mais distraído. Fico com o benefício de escolher a mesa. Que seja uma cabine nos fundos, então. Ainda os finos não encontraram o caminho da mesa e já se fala dos planos dos mestres, de Bergman, Tarkovsky e Reis. Gajo culto, este João. A conversa lembra-me algo que Edgar Pêra escreveu sobre Paulo Rocha: numa das aulas, o último rumava em direcção à tela, de joelhos, oferecendo um braço em troca do olho de Dreyer para tirar planos. O João que, confessa-me, também não acha nada mal o negócio faustiano sugerido por Rocha, despede-se com o resto do seu fino e a certeza de que nestas terras lusitanas ninguém fotografa Cinema tão bem como o Rui Poças. Concordo. E ponho-me a ouvir discussões alheias.
Ao balcão fala-se do Porto. Do clube, claro está! Nota mental: guardar um dia destes para escrever sobre o Porto - a cidade, claro está! - lá no blog. Resisto à tentação de dar uma vista de olhos ao catálogo. Quero manter o desafio de seguir o festival em modo guerrilha, deixar-me guiar pelos deuses do celulóide. Estar na sala às horas marcadas e abrir os olhos, só e apenas. Ao balcão ainda se berra sobre o Porto. O caderno, esse, fica na mala; prefiro escutar o ambiente que me rodeia, saborear o momento. A vida trata-me bem. Merda, tenho de pedir ao Luís a tal entrevista! A ver se o encontro na Católica.
O Sol já se põe quando regresso ao campus. O telemóvel vibra-me no bolso. Nem de propósito, uma mensagem do Luís. O gajo deve ser bruxo! Vou ter com ele. Diz que nos dá a entrevista com todo o gosto, que é um prazer. E despede-se num abrir e fechar de olhos, sempre apressado. Desço ao bar. Mais amigos. Uns quase de infância, outros de boémias noitadas nos Leões. Pergunta-se pelo paradeiro (incerto) de conhecidos em comum, fala-se de música, festarolas e, sobretudo, Cinema. Chamam-me doido por preferir Truffaut a Godard (um «tu não sabes o que dizes» roda a mesa). Começa uma sessão competitiva de audio - à qual falto -, e aproveito para esticar as pernas. Mais reencontros, mais abraços partilhados, mais parvoíces disparadas para o ar ao desbarato. O Junior, bracarense semanal, telefona-me. Garante-me que chega sem falta amanhã, que ainda apanha os dois últimos grupos de vídeo a competição. Desligo mesmo a tempo: toca a sineta. Vão começar os filmes.
HOTEL AMENITIES (Espanha, 2012), de Julia Guillén Creagh, abre bem a sessão. Dois amantes, ambos casados com outras pessoas, encontram-se pela primeira vez num quarto de hotel. Conheceram-se online e pretendem agora consumar o caso. Só que o Universo é um sacana moralista que parece não os querer deixar concretizar o desejo carnal. Os telemóveis tocam nas piores alturas possíveis; primeiro o dela, depois o dele. São os respectivos cônjuges. Um momento de dúvida para, no final, a porta se fechar com o aviso para não incomodar o par. O resto não se precisa de saber.
Já PELUQUERO FUTEBOLERO (Espanha, 2012), de Juan Manuel Aragon, vive principalmente do seu argumento. Não revelando nada de novo, aproveita, ainda assim, os elementos à disposição para criar uma história divertida pelos seus contornos absurdos. Vale pelas gargalhas e pela (passageira) interrogação se a desorientação do homem que, acabado de trair o clube, vai cortar o cabelo não passará de um conflito interior?
Menos objectivos - até porque não precisam de o ser - são MILK GLASS (Rússia, ?), de Egor Chichkanov, DOUBLE TAKE (Suécia, ?), de J. Tobias Anderson, e DELL' AMMAZZARE IL MAIALE (Itália, 2011), de Simone Massi. Sobre os dois primeiros, a conversa é rápida: o de Chichkanov é um videoclipe - bem filmado, é verdade, mas um videoclipe, ainda assim -, a roçar o artsy-fartsy, enquanto que o de Anderson é uma montagem em split-screen de cenas de Intermezzo: A Love Story, de Gregory Ratoff, decompondo campos-contra-campos de Leslie Howard e Ingrid Bergman (acabei por gostar do resultado). Relativamente ao de Massi, sobre o qual já tive a oportunidade de escrever a propósito de um outro evento, confirmei duas suspeitas: primeiro, que o trabalho técnico da animação é, de facto extraordinário - já para não falar da sonorização -; segundo, que falta significado à obra, viajando-se apenas entre camadas.
NEGOTIATING REPRESENTATION IN ISRAEL AND PALESTINE (Israel/Palestina/Reino Unido, ?), de Huw Wahl, parece-me um objecto com mais valor social/humanitário do que cinematográfico. Não fosse o magnífico trabalho de som - de uma riqueza enorme -, pouco havia a espremer, em Cinema, do conjunto de stills de fotojornalistas narrado pelos próprios. Salva-se a mensagem da liberalização da imagem enquanto ferramenta da consciência social (e global). Melhor na combinação da mensagem com a linguagem cinematográfica é ANDERSARTIG (Alemanha, 2011), de Dennis Stein-Schomburg, animação de traço delicado contada pela única sobrevivente de um bombardeamento a um orfanato alemão durante a Segunda Guerra Mundial. Relato impressionante de uma juventude perdida, suportada pela leveza etérea que lhe dá forma.
Guardou-se o melhor para o fim. DEUS ET MACHINA (Espanha, 2012), de Koldo Almandoz, é uma obra rara no modo como se desenha. Um homem chega a uma fábrica de manhã e põe a funcionar o Mundo - trata-se de um Deus-Maquinista encantado pela Natureza que gere, mas descontente com os homens que O gerem. Se calhar Nietzsche enganou-se e Deus, afinal, não morreu: escolheu foi demitir-se daquele emprego ingrato e deixar as responsabilidades para outro.
António Tavares de Figueiredo
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