sexta-feira, 17 de maio de 2013

Photo (2012)

Creio que Carlos Saboga não podia ter escolhido melhor altura para se lançar na realização. Aos 76 anos, e depois de escrever para nomes como Jorge Paixão da Costa, Fernando Lopes, António-Pedro Vasconcelos, Mário Barroso - que aqui lhe devolve o "favor", fotografando-lhe a estreia - e Raoul Ruiz, experiência não lhe falta para saber o que deve, e quando, arriscar. Não se estranha, portanto, que se verifique em PHOTO a mesma atenção ao detalhe e às personagens secundárias que marcou - ainda marcará? - os seus argumentos para outros autores.


Abre o filme em Paris, e logo uma morte. Um corpo num quarto muito escuro, iluminado por uma esfera luminosa. Quando a filha aparece, uma outra mulher - a empregada? a amante? - diz-lhe que a mãe pediu para que se queimem todos os papéis e fotografias deixados. Lá vai a rapariga explorar o espólio, nova esfera iluminada no fundo, e eis que encontra umas fotografias de um grupo de rapazes portugueses, datadas de 1970-e-troca-o-passo. E um postal de um desses exilados demonstrado à francesa a vontade de assistir ao parto da filha. Corte para o velório, com o quarto ainda mais escuro - e a mesma esfera luminosa -, e um homem mais velho, o agora pai adoptivo, a colocar paternalmente a mão no ombro da filha. A descrição não lhe faz a justiça devida, mas a primeira vinheta demonstra que Saboga - auxiliado pela extraordinária direcção de fotografia de Barroso - percebe o que faz. O mosaico que constrói, introduzindo personagens - algumas desnecessárias, diga-se de passagem -, revela o que de melhor continua a haver no trabalho de Saboga: o argumento cuidado.

As peças parecem encaixar exactamente no sítio certo, sem nunca fugirem ao lugar que lhes é reservado. E a câmara corta as cidades em travelling, enquanto se ouve, em voz-off, um italiano pedinchão que quer Elisa de volta a Roma. Não cede, e chegada ao destino - um tal jardim à beira-mal plantado -, põe-se à procura do pai biológico que a mãe lhe tentou esconder.

Mas, no fundo, não passa tudo de um pretexto de Elisa para fugir ao namorado italiano que a pediu em casamento. O whodunnit parental, que depressa dá lugar - e o pai adoptivo bem diz à filha não ter qualquer interesse em entrar no «melodrama grotesco (...) do falso-pai, suposto pai e pai substituto» - ao criminal, e que a traz a Portugal poderia muito bem tê-la levada a um outro país qualquer. Ou mesmo ficar-se por Paris, nas margens do Sena. O espaço geográfico torna-se, assim, irrelevante - salvo o contexto sócio-político salazarista, é claro - a partir do momento em que se percebe que há ali alguém a evadir-se do presente. E que para isso está disposta a viver «entre fantasmas» - quase ao ponto de se tornar ela própria num - de um passado assombrado.

De resto, saltam à vista algumas semelhanças - temáticas, espaciais e temporais - entre Photo Night Train to Lisbon, de Bille August. Não deixa de ser curioso que após anos a empurrar a questão para o canto, estreiem em sala separados por menos de dois meses dois filmes - sem considerar para o efeito Operação Outono, de Bruno de Almeida, de finais do ano passado - que abordam de forma mais ou menos aberta as atrocidades cometidas durante o Estado Novo. E que sejam dois estrangeiros - Elisa e Raimund, respectivamente - a colocar o dedo na ferida. Nas mãos e no espírito partido de antigos prisioneiros, na culpa provocada pelas denúncias forçadas, em inspectores desajustados da realidade actual - Rui Morrison, a melhor personagem da estória? - que choram ao encontrar os seus "filhos" massacrados. Tanto num como no outro caso, mesmo admitindo que em Night Train to Lisbon a representação dos efeitos causados pelos encontros com a PIDE é mais explícita, o passado não-tão-distante que se projecta na tela custa a digerir.

No fim, restam apenas fragmentos: do tempo, da verdade, da mentira, das próprias fotografias que dão o título ao filme. Saboga estilhaça a memória dos intervenientes, confunde factos e versões, mistura traições com o amor. E fá-lo com tamanha leveza que quase se perdem as subtilezas no subtexto. Veja-se, por exemplo, a magnífica mise-en-abyme que coloca Elisa a ver-se grávida de si mesma num auto-retrato da mãe.

Para terminar, que estas linhas já vão longas, três breves notas: 1) aos 76 anos, Carlos Saboga soube contrariar a ansiedade característica de uma primeira direcção, evitando o atropelo de ideias; 2) igualmente impressionante é a sensualidade que consegue imprimir, a espaços, num filme pontuado pela morte; e 3) por uma questão de justiça para com o filme de August acima mencionado - já por cá pontuado -, Photo leva também da minha parte oito câmaras, ainda que o tenha achado ligeiramente superior (mas não o suficiente para lhe subir a classificação). A primeira fita de Saboga fica, desde já, a pedir uma segunda. E nós agradecemos.


Título Original: Photo (França/Portugal, 2012)
Realizador: Carlos Saboga
Argumento: Carlos Saboga
Intérpretes: Anna Mouglalis, Simão Cayatte, Johan Leysen, Marisa Paredes, Rui Morrison, Didier Sandre
Fotografia: Mário Barroso
Género: Drama
Duração: 85 minutos




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