Às tantas, há em SPRING BREAKERS um momento de rara inspiração: Alien - o rapper gangster/piroso de James Franco - ensaia ao piano, iluminado por um pôr-de-sol rosa, uma balada de Britney Spears. Corta-se das raparigas a dançarem alegremente, de armas na mão e encapuçadas, para uma série de assaltos realizados pelo bando, sempre ao som daquela música angelical - «This song is by a little-known pop singer by the name of Britney Spears, An angel on this earth if there ever was one.» -, escolhida para mostrar às franguinhas o lado mais sentimental do durão. A iconoclastia pop de Harmony Korine encontra nessa sequência o seu expoente máximo, fruto da sobreposição de realidades inicialmente díspares que se encontram num estado quase-onírico.
Uma atmosfera de sonho, semelhante a uma realidade virtual, mantida pelas próprias personagens, dessensibilizadas do que se passa à sua volta. Uma das raparigas diz às outras para pensarem num assalto que estão prestes a cometer como se de um videojogo se tratasse. O crime é visto, em plano-sequência, da perspectiva da condutora, à distância e através das janelas do restaurante. Esse tratamento das acções, às quais quase se extraem os agentes, volta a resultar muito bem na cena do tribunal - que marca também a passagem entre a euforia inicial e os primeiros indícios da ressaca -, quando as raparigas dizem muito inocentemente ao juiz que não têm dinheiro para pagar a fiança.
Essa visão muito peculiar da narrativa, cultivada por Korine desde os seus primeiros trabalhos, misturando formatos e composições, continua presente apesar da (falsa) aproximação ao Cinema convencional. Spring Breakers é, contudo, fundamentalmente um exercício de (des)montagem. Dos planos, das personagens, da imagem das princesas Disney, da cultura voltada para o seu próprio umbigo e, sobretudo, das próprias convenções do género - o policial, o drama, a comédia -, baralhadas e desconstruídas ao ponto do estranhamento.
Mas, principalmente, Korine destrói a lógica videoclipe que tem vindo a surgir no Cinema contemporâneo. E fá-lo pelo propositado mau-gosto com que filma, a espaços prolongado por longuíssimos ralentis - a sequência de abertura, por exemplo, ao som de Skrillex, ao qual se voltará no final, novamente ao piano -, iluminando a tela em tons de arco-íris-choque.
O mau-gosto, no entanto, não é de agora. Faz até lembrar o dos seus argumentos para Larry Clark - Kids (1995) e Ken Park (2002) -, outros teenage wastelands. Nesse sentido, faço minhas as palavras da Rita Morais de Carvalho - « (...) de relembrar do hábito de Korine levar à exaustão a análise dos seus personagens, tal como acontece novamente em Spring Breakers - daí se aconselhar a ver o filme depois de já conhecer alguma coisa do realizador e a não levar, certamente, tudo à letra» -, num pertinente aviso à navegação. para que não se faça do estilo visual de Spring Breakers algo simplesmente literal. Também daí o vazio do argumento, preenchido por repetições ad nauseam de imagens e ideias fragmentadas, quererá dizer mais acerca da inanidade do explorado do que o que realmente mostra. Por não se poder esconder a vacuidade dos comportamentos - porque, efectivamente, não há ali nada senão o hedonismo histriónico de umas spring breaks alimentadas a alucinogénicos -, tenta-se atribuir-lhes um sentido qualquer, metralhando máximas pseudo-filosóficas que, a cada reprodução, se vão esvaziando do seu significado.
Se há mais de uma década, numa outra série sobre quatro amigas cosmopolitas, já havia quem dissesse «My friends think I'm shallow. Sometimes I think they're right. Other times I think, "Hey, I'm fucking a model."», já não estranho que o gangster de Franco se saia com tão abjecto monólogo - o do «This is the fuckin' American dream. This is my fuckin' dream, y'all.» - sobre o seu sonho americano. Um sonho que, de tão desmedido - as festas, as drogas, o sexo, o dinheiro, o poder -, dinamita quem por ele é seduzido. E, matando o sonho, já não resta sequer um pesadelo que nos sirva de salva-vidas: sobra apenas o psicadelismo do miasma fluorescente que inunda o campo, do tasteless a que Korine parece tão dedicado. E isso, quer se goste, quer não, merece o maior dos elogios. Se serve de retrato definitivo de uma - a minha? - geração? Deixo a resposta para quem, achando-se de direito, se sinta habilitado a dá-la. Para já, e para mim, um dos sérios candidatos a melhor do ano.
Realizador: Harmony Korine
Argumento: Harmony Korine
Intérpretes: James Franco, Selena Gomez, Vanessa Hudgens, Ashley Benson, Rachel Korine, Gucci Mane
Música: Cliff Martinez, Skrillex
Fotografia: Benoît Debie
Género: Comédia, Crime, Drama
Sinceramente desconhecia a brilhante forma que o António Tavares de Figueiredo usa na análise crítica aos filmes que vê. Parabéns.
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