sexta-feira, 31 de outubro de 2014

The Babadook (2014)


Andávamos todos distraídos com o que nos ia chegando do lado de lá do Atlântico - principalmente com Annabelle, de John R. Leonetti, mas já lá iremos -, quando nos apercebemos, quase de súbito, que o melhor Terror do ano provavelmente viria dos antípodas. E THE BABADOOK, de Jennifer Kent, que ia sorrateiramente conquistando crítica e público à sua passagem, cumpre exactamente essa promessa: é, simultaneamente, um dos filmes mais assustadores e belos do ano.


Ultrapassada a confusão inicial que um filme de Terror australiano e dirigido no feminino possa causar, cedo se percebe que só uma mulher (e, especialmente, uma como Kent) poderia realizar este The Babadook. Primeiro, porque Kent mostra uma sensibilidade rara no género (e nos homens do género); segundo, porque toda a obra é pensada numa perspectiva feminina. A prova está, precisamente, no confronto entre The BabadookAnnabelle: apesar dos pontos em comum que ambos partilham, Kent superioriza-se - a si, e ao seu filme - a Leonetti na destreza do seu desenho; onde Leonetti é, todo ele, mão pesada, Kent é elegante e ágil. Não deixa de ser irónico que tenha sido ela, e não Leonetti, discípulo mais directo, a interiorizar melhor os ensinamentos do mestre Wan.

Kent insere-se, assim, e mesmo que tardiamente, numa geração de cineastas que tentam devolver o Terror às suas origens - e, a esse respeito, não se terá afirmado também ela como uma das exegetas do género? -, prestando a devida homenagem a nomes como Mario Bava e Stanley Kubrick. Ao representar o seu bicho-papão como algo que poderia facilmente ter saído do Expressionismo germânico (e Babadook apresenta profundas semelhanças com Nosferatu), ensaia um regresso do género aos seus primórdios, depurando-o das impurezas resultantes da passagem do tempo. The Babadook é, dessa forma, um filme muito puro, muito limpo.

Outrossim, Kent explora um outro elemento recorrente nos trabalhos da nova vaga do Terror: o seu Mal (ou, antes, a sua personificação do Mal), além de precisar de um ancoradouro físico que lhe permita manifestar-se, é intrínseco às próprias personagens. Note-se que a verdadeira opressão não será tanto ao nível da presença da criatura (e aqui torna-se complicado descobrir quem veio primeiro, se a criatura, se o criador), mas na relação entre mãe e filho (dela, pela morte do marido; dele, pela ausência de Amor genuíno) e na luta pelo estabelecimento de fronteiras e controlo sobre a outra parte. O primeiro acto do filme é particularmente eficaz na demonstração dessa dinâmica familiar conturbada, antecipando, ainda antes do Medo, a agressão iminente. Os monstros podem, afinal, ser muito mais reais do que aquilo que se pensa.

Numa só palavra, a grande vitória deste The Babadook - e o que o eleva a Cinema de excepção - pode ser resumida na sua simplicidade. A simplicidade com que Kent tão bem explana o seu argumento e os motivos que esconde, movendo-se habilmente entre referências, das mais claras (os filmes que passam na televisão) às menos explícitas (a inversão genérica, mesmo que parcial, que opera em relação a The Shining, por exemplo). E se elogio as bases sólidas sobre as quais a nova geração do Terror norte-americano, com Wan e West à cabeça, constrói as suas obras, não poderia deixar de o fazer, igualmente, para esta australiana que agora se estreia nas longas-metragens. O futuro afigura-se risonho para Jennifer Kent.


Título Original: The Babadook (Austrália, 2014)
Realizador: Jennifer Kent
Argumento: Jennifer Kent
Intérpretes: Essie Davis, Daniel Henshall, Tim Purcell
Música: Jed Kurzel
Fotografia: Radek Ladczuk
Género: Drama, Terror, Thriller
Duração: 93 minutos



As Above, So Below (2014)

 
Quantos de nós já visitámos uma feira popular? Certamente nos cai em graça a memória de alguma vez pormos os pés numa casa assombrada. Pois, para mim, AS ABOVE, SO BELOW foi mais uma dessas idas a uma casa-não-tão-assombrada que encontramos por aí nos parques de diversões ou nas ditas feiras populares.
 
 
Descrito por algumas críticas como uma verdadeira colonoscopia pelas catacumbas de Paris, a película escrita pelos irmãos Drew e John Erick Dowdle (realizador de Quarantine e Devil)  e dirigida por este último falha miseravelmente em cumprir as expectativas criadas em redor deste filme. Sendo ele detentor de uma premissa interessante e com o seu quê de rejuvenescimento, à mercê de um realizador que demonstrou um certo grau de perícia na execução de filmes em espaços confinados, veio como uma surpresa a má concepção deste faux-doc.

Nele, embarcamos numa jornada com Scarlet (Perdita Weeks) académica de resguardo, fluente em 6 línguas e cinturão negro em Krav Maga, na procura efémera da pedra filosofal. Abelhuda, extremamente impulsiva (ao ponto de nos criar uma vacilante fúria desenfreada sempre que ela se nega a ouvir um "não") e com pouca consideração por tudo e todos, à excepção da sua obsessão patológica pela busca da pedra de Flamel, Scarlet  segue um conjunto de pistas que a levam a montar uma expedição até às infames catacumbas parisienses. O quinteto que a acompanha é constituído por o seu ex-amante fluente em línguas mortas George (Ben Feldman), Benji (Edwin Hodge) o cameraman que decidiu fazer desta caça ao tesouro um documentário, Papillon, Souxie e Zed, três parisienses habituados a manobrarem-se pelas galerias subterrâneas, que aceitaram guiar os 3 estrangeiros sob o falso pretexto de enriquecerem com o tesouro que nelas viriam a encontrar.

Apesar da óbvia estupidez que era acatar a teimosia de Scarlet, que os leva para patamares cada vez mais profundos das catacumbas, a equipa (cujos membros possuem, cada um, uma câmara HD nos seus capacetes) obedece sem nunca perder de vista o seu objectivo. Excepto, claro, quando a realidade deixa de ser vinculada pela lógica e coisas estranhas, absurdas e macabras começam a ocorrer. A expedição tornou-se, de facto, numa viagem ao inferno do subconsciente dos 6 exploradores.

Difícil de assistir devido ao enjoativo e alienante carácter do trabalho de câmara, o filme é marcado por um ritmo extremamente acelerado, o que causa alguma confusão e nos deixa com umas quantas questões e é, na minha humilde opinião, atolado por demasiada bagagem narrativa. A desilusão perdura quando os irmãos Dowdle decidem não fazer jus do ambiente naturalmente sombrio e claustrofóbico de um cenário acanhado e único das catacumbas. Em vez disso As Above, So Below arrasta-se desnecessariamente ao tentar afirmar os elementos do bando como pessoas, culminando num final piegas e sentimentalista.

Não obstante a metragem não é, de todo, descabida de alguns méritos. É possível identificar pistas visuais impressionistas  logo nos primeiros minutos de filme e é, notória a tentativa de este se diferenciar da preponderância dos filmes found-footage. Há que louvar, também, a atmosfera surreal criada em As Above, So Below de vaguear às escuras sob as ruas da capital francesa, incitando uma experiência verdadeiramente desorientadora, sem esquecer ter em conta todos os desafios e dificuldades que as catacumbas parisienses representariam para uma equipa de filmagem tradicional - tectos baixos, passagens estreitas e água até à cintura. Ainda assim, foi possível gerar momentos de tensão genuína sem causar  muito afastamento da esfera do real.

Para todos os efeitos, se esperam encontrar uma história genuinamente interessante junto das ossadas centenares das galerias subterrâneas de Paris o meu conselho seria mesmo visitarem-nas pessoalmente.


Título Original: As Above, So Below (EUA, 2014)
Realizador: John Erick Dowdle
Argumento: Drew Dowdle, John Erick Dowdle
Intérpretes: Perdita Weeks, Ben Feldman, Edwin Hodge, François Civil
Fotografia: Léo Hinstin
Género: Terror, Thriller
Duração: 93 minutos
 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Na casa de Wan

 
2013 foi um ano em grande para James Wan. Desde logo, porque estreou os seus dois melhores filmes até à data - THE CONJURING e INSIDIOUS: CHAPTER 2. Mas, sobretudo, porque finalmente alcançou o estatuto de virtuoso da câmara que lhe vinham preconizando há algum tempo (o de mestre do Terror contemporâneo, esse, já não é de agora). Impõe-se, portanto, duas perguntas relevantes no tocante aos seus trabalhos mais recentes: 1) poderão os dois tomos de Insidious e The Conjuring ser vistos como um tríptico da casa assombrada?; e 2) haverá algo que se assemelhe, hoje em dia, a um raccord tipicamente Waniano?


O tríptico

A defensabilidade dos dois capítulos de Insidious + The Conjuring enquanto tríptico depende da aceitação, ou não, do espaço enquanto catalisador primeiro do Terror no Cinema de Wan. Ricardo Vieira Lisboa, na sua crítica a Insidious: Chapter 2, argumenta nesse sentido, estabelecendo um paralelo entre o australiano e Tobe Hooper. Mais, o próprio Wan parece, outrossim, mover-se na mesma direcção quando explora o espaço tão minuciosamente - e exemplo cabal dessa sua característica será o plano-sequência de The Conjuring que segue a família em mudanças até às traseiras da casa.

Essa abordagem ao espaço, enquanto portal do medo, e que se inicia fundamentalmente em The Conjuring (já dava sinais de vida em Insidious, mas era demasiado rudimentar), assinala uma das características mais entusiasmantes do trabalho recente de Wan: a compreensão da dicotomia visível/invisível, e a sua utilização em conformidade com o pretendido. Note-se que a passagem entre os dois mundos em Insidious: Chapter 2 se faz, amiúde, apenas às custas do nevoeiro e de uma mudança de iluminação, sem recurso a cortes ou efeitos digitais; ambas as dimensões coexistem no mesmo lugar, diferenciando-se na capacidade das personagens (e do público) as apreenderem. O invisível está, afinal, escondido à vista de todos.

É esse o maior dos piscares-de-olho de Wan ao espectador, a noção de que o seu Terror só acontece entre portas. As suas assombrações necessitam de uma âncora física para se manifestarem, de algo no visível que as veicule e lhes permita existir. A tendência não é nova: em Videodrome, de Cronenberg, e Sinister, de Scott Derrickson, já o Mal existia no formato físico do filme; em Wan, como em Ti West (e lembrando The Innkeepers), reside no espaço em que se desloca.

Não será, portanto, tão descabido quanto isso entender as três obras mais recentes de Wan como pertencentes a um mesmo universo, e percorrê-las no conjunto, mais do que de forma temática e intuitiva, pela importância atribuída à(s) casa(s) das personagens. Assim se percebe melhor a abundância de planos invertidos a 180º em The Conjuring e de planos-gémeos em Insidious: Chapter 2. No fundo, trata-se de uma dupla inversão, com Patrick Wilson à cabeça: a primeira, de Insidious para The Conjuring, inverte Wilson de vítima para adversário do Mal; a segunda, de The Conjuring para Insidious: Chapter 2, retorna-o ao ponto de partida, convertendo-o em agressor. É nessa relação que a obra de Wan ganha em inteligência à dos seus pares, e se descola dos seus primeiros trabalhos.


O raccord Waniano

Mas se é verdade que o percurso entre as três obras se pode fazer de forma temática ou de acordo com a importância atribuída à figura da casa, também o será que é possível fazê-lo atendendo ao conjunto de mecanismos que Wan vai empregando - e aprimorando - no seu decurso.

E esse será, porventura, o critério segundo o qual se torna mais notório o desenvolvimento da dialéctica fílmica do realizador australiano. Se Insidious esgotava frequentemente a sua desmesurada ambição técnica em meras inconsequências - e já por  defendi essa minha opinião -, o mesmo não acontece com os dois filmes que lhe sucederam: há agora uma preocupação constante de Wan em trabalhar enquadramentos e planos (uma preocupação apenas comparável, talvez, à de Ti West, no actual panorama do género), tentando impregnar cada um com o devido significado.

Exemplo perfeito desse esforço será, além do plano-sequência de The Conjuring já descrito no ponto anterior, a brilhante desmultiplicação temporal operada numa cena de Insidious: Chapter 2: a mãe ouve, anacronicamente, e através do baby monitor, a chapada que irá receber um par de planos adiante. Essa antecipação do momento do susto - que, mais à frente, aparece invertida com a explicação, a posteriori, da abertura das portas - é mais uma razão para a admissão de Wan como um dos virtuosos do género.

Repare-se, contudo, que não se trata de um abandono completo das ideias antigas; antes, Wan procede a uma triagem, separando as boas das más (ou as que percebeu que resultavam, ou poderiam resultar, das que não tinham cabimento), refinando os seus predicados estilísticos.

[Motivo pelo qual a falta de inspiração quase absoluta de Annabelle, de John R. Leonetti, causa ainda mais espécie. Leonetti, que trabalhou no tríptico enquanto director de fotografia, não foi capaz de transpor as boas ideias encontradas por Wan quando se viu sozinho em tarefas de direcção, esvaziando-as em lugares-comuns e inocuidades.]

O raccord (tipicamente) Waniano acaba por ter razão de ser afirmado a partir do momento em que se entendem essas características - a ausência de cortes, a elegância na movimentação da câmara, o anacronismo na apresentação do susto à audiência e uma certa independência em relação aos jump scares - como peculiares do realizador. E Wan afigura-se, assim, juntamente com West, como um dos grandes executantes e exegetas - não haverá neles uma obsessão com a descoberta da origem do medo? - do Terror moderno, fazendo esquecer os "desastres" de início de carreira. Agora é esperar para ver se o seu talento encontra lugar para continuar a existir.


Título Original: The Conjuring (EUA, 2013)
Realizador: James Wan
Argumento: Chad Hayes, Carey Hayes
Intérpretes: Vera Farmiga, Patrick Wilson, Lili Taylor, Ron Livingston
Música: Joseph Bishara
Fotografia: John R. Leonetti
Género: Terror
Duração: 112 minutos


Título Original: Insidious: Chapter 2 (Canadá/EUA, 2013)
Realizador: James Wan
Argumento: Leigh Whannell, James Wan
Intérpretes: Patrick Wilson, Rose Byrne, Ty Simpkins, Lin Shaye, Barbara Hershey, Steve Coulter
Música: Joseph Bishara
Fotografia: John R. Leonetti
Género: Terror, Thriller
Duração: 106 minutos

Trailer de "Insidious: Chapter 3"


O terceiro capítulo de INSIDIOUS chega em 2015, agora com Leigh Whannel como realizador. Será este capaz de superar James Wan? Costuma-se dizer que quem tudo quer tudo perde. Para Whannel, argumentista, actor e agora realizador esperamos que não esteja a tentar voar demasiado alto. Entretanto, ficamos com uma espreitadela do que está para vir.



Berberian Sound Studio (2012)

 
Se pretendem descobrir a beleza da produção de filmes europeus, então, para os menos entendidos, BERBERIAN SOUND STUDIO tem a mostrar algo de genial no que toca a criação dos filmes de terror que estamos habituados a ver há tanto tempo.
 

Gilderoy, um tímido engenheiro de som cinematográfico, é convidado a trabalhar num filme em Itália. Assim se começa a moldar a história de um premiado filme de terror psicológico.

O actor principal (Toby Jones) rapidamente se apercebe que o trabalho que aceitou não era o filme sobre cavalos que pensava, mas sim um filme de terror, ou, como o produtor insistia em lhe chamar, “a Santini movie”. Apesar de inexperiente nesse género de filmes, a brilhante habilidade de Gilderoy agarra a atenção do público ao revelar-nos as diversas técnicas de produção dos efeitos sonoros nestes tipos de filme que tantas vezes nos dão a ilusão de uma aterradora realidade. Sejam as melancias trinchadas ou o azeite na frigideira, a fruta e as técnicas de culinária desempenham um papel tão importante ao criar o som do filme “Santini” que mesmo Gilderoy começa a ter dificuldades em distinguir a realidade da macabra ficção criada pela sua arte, adicionada ao crescente ambiente hostil dentro do estúdio.

Vale a pena destacar este filme, que sem dúvida impressiona ao demonstrar o poder do som no cinema de terror que há tantos anos aterroriza os sonhos de alguns, ainda que os gritos estridentes, as cabeças despedaçadas e os corpos desmembrados se revelem uma agressão maioritariamente à garganta e à área da botânica. Tudo isto para demonstrar de uma forma impressionante como a mente humana consegue criar imagens mentais do terror descritas apenas pelo som e a excelente fotografia do filme, apesar de nunca nos serem reveladas quaisquer imagens do realizado dentro daquele assustador estúdio italiano.
 
 
Título Original: Berberian Sound Studio (Reino Unido, 2012)
Realizador: Peter Strickland
Argumento: Peter Strickland
Intérpretes: Toby Jones, Antonio Mancino, Guido Adorni, Chiara D'Anna, Tonia Sotiropoulou
Música: Broadcast
Fotografia: Nicholas D. Knowland
Género: Drama, Terror, Thriller
Duração: 92 minutos
 
 

Twixt (2011)


Afastado da direcção durante dez anos, gerou-se muita expectativa quando Youth Without Youth, de Francis Ford Coppola, estreou em 2007. Mas cedo se percebeu que este não era o mesmo Coppola de outros tempos, tamanha era a distância que o separava da rigidez (e do comercialismo) dos seus trabalhos anteriores. E logo se partiu a criticá-lo pelo rompimento com a fórmula habitual e o legado construído - TWIXT não escapou, alguns anos volvidos, ao mesmo fogo cruzado.


Primeiro, porque apresentava, à partida, fortes semelhanças com aquele que muitos consideram o último grande filme do norte-americano, Dracula, sem nunca ser, no entanto, a sua continuação lógica. Depois, porque segue na passada dos títulos pós-regresso de Coppola, assumindo-se quase como um exercício à mão-livre. O caldo estava já entornado.

Mas, e analisando por alto as suas três obras mais recentes - Youth Without Youth, Tetro e este Twixt -, facilmente se identifica uma das características mais positivas da incursão de Coppola pelo digital: ao permitir-lhe reduzir os custos, deixou-o com uma maior liberdade para prosseguir a sua visão. Chamando unicamente a si a responsabilidade na produção, direcção e escrita do argumento, Coppola cortou com as amarras que o prendiam à máquina dos estúdios e ao passado.

Twixt revela-se, assim, e talvez até mais do que os dois que o antecederam no período digital do realizador (apanágio, quem sabe, de ser o primeiro argumento original), um filme incrivelmente solto, livre de formalismos. Por muito que se demore a entranhar - e demora o seu tempo -, há que lhe louvar esse seu traço; até porque, no seu cerne, esse desprendimento permite-lhe apresentar-se como um objecto muitíssimo inteligente no dispositivo que constrói. Vejamos: nada do que nos é mostrado até à última cena (que confirma, de certo modo, o que já é dado a entender pela narração da primeira) é real; trata-se tudo de um pitch de um escritor de segunda ao seu editor. É esse o golpe de asa de Twixt, que parece ter passado despercebido a muito boa gente, a noção de que tudo não é mais do que uma simples venda, até mesmo num filme que não foi pensado para ser vendido.

Daí se percebe o porquê das sequências de sonho do escritor alcoólico de Val Kilmer serem tão apatetadas. O próprio mecanismo dispositivo em que se inserem acaba por justificar o overacting/underdirecting que as vinca (e é aqui que convém relembrar que Coppola raramente dá ponto sem nó): são, tão-somente, a demonstração da literatura de má qualidade maquinada por um escritor na esperança de reanimar (e todo o filme, por sua vez, gravita em torno da figura da reanimação) a sua carreira. A forma como são fotografadas por Mihai Malaimare, mostrando uma rara compreensão do que é fotografar em digital, parece, outrossim, apontar nesse sentido: ao sugar a cor ao narrador (de novo, a personagem de Val Kilmer), iluminando, em detrimento, os fantasmas que lhe vão aparecendo, carrega o carácter irreal da dimensão acordada; no fundo, a fantasia declarada, com os espectros de Poe e dos vampiros, assume-se como sendo mais real para o escritor do que o que, à partida, existe. Partindo de um mecanismo oposto ao utilizado por Douglas Trumbull em Brainstorm, que "projectava" as recordações nas personagens em 70mm, para que fossem visualmente mais nítidas, obtém-se um resultado em tudo semelhante: a confusão entre o verdadeiro e o imaginado, entre o físico e o mental.

São essas as boas ideias que conferem a Twixt - mesmo que não se trate de um filme particularmente brilhante, nem nada que se pareça - os seus principais pontos de interesse. No fim, resta a dúvida se há redenção que valha às personagens presas no universo onírico a que Coppola se entrega. Uma coisa, contudo, é certa nesta fase da sua filmografia: Coppola, ao saber escapar-se e reinventar-se, já não se limita a fazer o que pode; agora, faz o que quer. E esse é motivo de sobra para que mereça o meu aplauso.


Título Original: Twixt (EUA, 2011)
Realizador: Francis Ford Coppola
Argumento: Francis Ford Coppola
Intérpretes: Val Kilmer, Bruce Dern, Elle Fanning, Joanne Whalley, David Paymer
Música: Dan Deacon, Osvaldo Golijov
Fotografia: Mihai Malaimare
Género: Terror, Thriller
Duração: 88 minutos


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A Nightmare on Elm Street (2010)


«Now, why won't you just fucking die?»

A crescente necessidade de reutilizar velhos clássicos e adapta-los para o público o moderno, numa tentativa, por vezes fraca, de amealhar mais uns trocos sobrepõem-se à necessidade de criar algo com qualidade. Muitas vezes destroçando o que tentam reimaginar a já duradoura vaga de reboots não deixam a salvo nenhuma das boas memórias que tivemos em frente ao ecrã quando éramos mais novos. A Nightmare On Elm Street (1984), de Wes Craven, não escapou ileso e teve a sua readaptação em A NIGHTMARE ON ELM STREET (2010), realizado por Samuel Bayer. Sem gosto nem surpresa, desfere mais um golpe num franchise que já há muito cometeu suicídio. Juntamente Friday the 13th, Halloween, Texas Chainsaw Massacre e muitos outros, ninguém está a salvo. Numa industria onde o dinheiro fala mais alto todas as vacas são ordenhadas sem consideração.


Originalidade é o que falta neste reboot, derrubado pela inexistência de conteúdo novo, com um argumento desinteressante, uma realização medíocre e um elenco de fantoches descartáveis sem talento,ou assim deram a entender. Somos defrontados com o mais genérico dos filmes de terror, quase obrigados engolir a receita que já todos provamos em demasia. Cenas, literalmente, copiadas do filme original e personagens genéricas sem qualquer tipo de personalidade. Será quase como ver hora e meia de gado a ser guiado para o matadouro, um matadouro lento, com problemas de voz e indecisão sobre a sua própria identidade. 

Freddy Krueger (Jackey Earle Haley), um dos vilões mais cruéis e ameaçadores volta para aterrorizar os nossos sonhos, desta vez com uma nova táctica, aborrecer-nos de morte. Agora com uma origem ligeiramente diferente poderá ser apenas mais uma alma atormentada a procura de retribuição? Ainda bem que não. No entanto Freddy é reduzido a mais um mero assassino com poderes sobrenaturais, sem mistério e completamente exposto desde o inicio. Para Jackey Earle Haley talvez os sapatos de Robert Englund sejam demasiado grandes para encher, tanto a sua pequena estatura e voz de fumador crónico não o beneficiam nos diálogos, já por si fracos.

A Nightmare On Elm Street falha ultimamente na completa falta de qualquer personagem que cause algum tipo de destaque, indeciso na escolha do herói e confuso no caminho que segue o enredo. Nunca chega a haver um sentimento claro de urgência ou perigo e as cenas mais assustadoras dificilmente são eficazes. Tudo perde interesse muito rápido, onde nada de emocionante acontece é complicado manter os olhos abertos - se o Freddy me assombrasse eu estava morto nos primeiros 10 minutos de filme.

Para um remake que tenta incessantemente ser diferente, pouco é realmente reinventado ou acrescentado. No que é apenas mais um ponto baixo do terror, A Nightmare On Elm Street se perderá nos anais do género como uma das mais fracas adições a um franchise clássico mas fundamentalmente ultrapassado.    


Titulo Original: A Nightmare On Elm Street (EUA, 2010)
Realizador: Samuel Bayer
Argumento: Wesley Strick; Eric Heisserer, Wes Craven (história original) 
Intérpretes: Jackey Earle Haley, Kyle Gallner, Rooney Mara, Katie Cassidy, Thomas Dekker, Clancy Brown
Música: Steve Jablonski
Fotografia: Jeff Cutter
Género: Terror
Duração: 95 minutos


Black Swan (2010)

 
Nomeado para Melhor filme dos Oscars 2010, e no contexto do Halloween (embora de forma pouco ortodoxa), surge-nos o thriller psicológico BLACK SWAN. Este filme conta a história de uma bailarina de uma prestigiada companhia de ballet, Nina Sayers (Natalie Portman) e o seu papel na ilustre produção de Swan Lake, na qual foi nomeada a protagonizar, tendo de personificar dois opostos morais: o cisne branco e seu gémeo identico, o cisne negro.
 
 
O problema surge nesse mesmo ponto, pois Nina, frágil, inocente, controlada adequa-se perfeitamente ao cisne branco, mas não ao outro. E a palavra "perfeitamente" não foi usado ao acaso, o problema da personagem em não conseguir dar vida ao cisne negro é esse mesmo, ela deseja ser demasiado perfeita, é demasiado controlada, o cisne negro necessita de alguém "solto", relaxado, sexy sem receio. É aqui que entra Lily (Mila Kunis), perfeita repreentação do cisne negro na vida real. E é nessa oposição de personalidades que realmente começa a intriga. (e algumas cenas que muitos gostaram certamente de ver).

A pressão do papel começa a afectar Nina, aliada à sua já existente faceta auto destrutiva e à própria condição de um dia-a-dia de uma bailarina, repleto de sacrifícios físicos e psicológicos, assim como a pressão do manipulador director da produção Thomas Leroy (Vincent Cassel) e ao ambiente abafado e controlado que vive em casa à mercê de sua mãe.

Todos este factores levam-nos numa viagem visualmente deslumbrante de nos prender ao lugar, onde é por vezes difícil distinguir o que é verdade do que é ilusão graças ao trabalho do grande realizador Darren Aronofsky e do brilhante argumento. O final do filme vai de encontro à própria história do Swan Lake, sendo que, após Nina demonstrar que também tem realmente um lado negro dentro de si que a possibilita de encarnar o cisne negro na perfeição, acaba por morrer por sua própria mão, mostrando que a sua determinação por ser perfeita é superior à própria vontade de viver. Com uma brilhante actuação de Natalie Portman e repleto de cenas capazes de "brincar" com a interpretação do espectador, assim como deixá-lo a reflectir sobre o que acabou de testemunhar, é fácil perceber toda a atenção que este filme recebeu no ano em que estreou.


Título Original: Black Swan (EUA, 2010)
Realizador: Darren Aronofsky
Argumento: Mark Heyman, Andres Heinz, John J. McLaughlin
Intérpretes: Natalie Portman, Mila Kunis, Vincent Cassel, Barbara Hershey, Winona Ryder
Música: Clint Mansell
Fotografia: Matthew Libatique
Género: Drama, Mistério, Terror, Thriller
Duração: 108 minutos


Antichrist (2009)


ANTICHRIST é  primeira entrada na Depression Trilogy de Lars von Trier. Ele retrata o angustiante luto de uma casal que vive a morte de um filho de uma forma luciférica e pseudo-depravada, procurando a convalescença da sua sanidade mental ao mesmo tempo que curam o seu coração despedaçado e concertam uma relação praticamente desfeita.


Após o funeral da criança, Ela (Charlotte Gainsbourg) torna-se incapacitada pelo sofrimento, dando início a todo um tratamento psicoterapêutico por Ele (o seu marido, interpretado por Willem Dafoe) exercido. Após um período nada produtivo de reabilitação em casa, durante o qual Ela se tenta libertar da dor causada pela perda, bem como da dependência que viria a criar em fármacos psiquiátricos, Ele decide experimentar terapia de exposição (também conhecido como Flooding) numa cabana isolada na floresta à qual deram o nome de "Eden".

A trama segrega-se em três momentos fundamentais (mágoa, dor e desespero) que apelam à sensibilidade humana de quem os experiencia, indagando materializar a emotividade expressiva de cada uma das partes procedendo segundo uma evolução antitética.

Antichrist foge, um-tanto-ou-quanto, da convencionalidade do género, manifestando-se como uma forma de arte gótica assente num simbolismo teológico cristão, uma pintura arrepiante da psique humana que promete 108 minutos de reflexão crítica acerca de algumas das mais controversas temáticas que horrorizam a humanidade.


Título Original: Antichrist (Alemanha/Dinamarca/França/Itália/Polónia/Suécia, 2009)
Realizador: Lars von Trier
Argumento: Lars von Trier
Intérpretes: Willem Dafoe, Charlotte Gainsbourg
Música: Kristian Eidnes Andersen
Fotografia: Anthony Dod Mantle
Género: Drama, Terror
Duração: 108 minutos


terça-feira, 28 de outubro de 2014

Thirst (2009)


Para os que se sentem cansados dos pálidos vampiros que continuam a invadir a nossa televisão nos dias que correm, a Coreia do Sul envia-nos o antídoto na forma de THIRST, um drama e uma dolorosa história de amor.


Sang-hyeon (Kang-ho Song) um padre católico e altruísta que se voluntaria para encontrar uma vacina para um vírus que assolava a área, acaba por contrair a doença, forçando-o a beber sangue para regredir os sintomas da enfermidade que ameaçava mata-lo. Obcecado pela religião, Sang-hyeon enfrenta um dilema ético sobre se deve ou não matar para sobreviver. Mesmo decidindo beber sangue apenas dos que já não o necessitam, o vampirismo causa uma evolução dos sentidos e da forma física e aquando do reencontro com os amigos de infância, Tae-ju (Ok-bin Kim) causa no padre uma nova sensação, a tentação da qual nenhum dos seus exercícios de autodisciplina o pode livrar.

São esses os pontos essenciais em que toca Thirst: tentação, culpa e pecado, num filme recheado de gore e cenas sexuais explicitas (e talvez demasiado longas) que levam este filme para o género da pornografia. Aconselho a ver este filme, pois contém um enredo interessante e atractivo com uma boa faixa sonora e cenas que nos fazem perguntar o que foi que acabamos de ver da maneira que só a Ásia tem para nos oferecer, lembrando-nos ainda do Terror que vampiros podem fazer surgir nas suas vítimas que pouco ou nada podem fazer contra estas criaturas nocturnas tão bem armadas para predar humanos, e com uma sede de poder e prazer infinitas.


Título Original: Bakjwi (Coreia do Sul, 2009)
Realizador: Chan-wook Park
Argumento: Chan-wook Park, Seo-Gyeong Jeong (baseado no livro Thérèse Raquin, de Émile Zola)
Intérpretes: Kang-ho Song, Ok-bin KimIn-hwan Park
Música: Yeong-wook Jo
Fotografia: Chung-hoon Chung
Género: Drama, Terror, Thriller
Duração: 133 minutos


Let The Right One In (2008)


 
LET THE RIGHT ONE IN (2008), de Tomas Alfredson, adaptado do romance com o mesmo nome, de John Ajvide Lindqvist, surpreende pela incrível história, óptima realização e duas actuações de topo por parte dos protagonistas. Uma abordagem sombria e, ao mesmo tempo, calorosa às romance de vampiros que promete derreter corações e gelar o sangue. 

Oskar (Kåre Hedebrant) é um rapaz solitário que vive atormentado pelos colegas de turma e pais despreocupados. Eli é um(a) vampiro(a) sedento(a) de sangue e com a eterna aparência de uma rapariga de 12 anos. Ambos encontram conforto um no outro e começam uma relação amorosa que leva Oskar a enfrentar os seus medos e a superar a angústia do dia-a-dia.


Tomas Alfredson brilha com o seu trabalho neste filme, uma realização sincronizada, com todos os elementos cruciais, O ambiente, as personagens a historia, tudo parece funcionar em harmonia. Será mesmo um filme terror? Talvez um romance mais deformado que o habitual, com a necessária violência inerente. Onde o diálogo é escasso e as imagens são mais importantes que palavras, e aprofundam o que nunca se chega a ouvir.

A imagem é cinzenta e gélida, a transmitir o sentimento de pobreza e solidão, contrabalançada apenas pelo calor dos laços criados pelos protagonistas, num contraste de cores e emoções, As próprias protagonistas são completos opostos, atraídos apenas pela angustia e sofrimento que partilham e que acabam por se complementar. Tanto Kåre Hedebrant e Lina Leandersson, com desempenhos exemplares nos papeis de Oskar e Eli, cativam logo desde o inicio, com uma grande complexidade e boa química. No entanto, não é tudo beijinhos e abraços, pois estamos perante um filme de vampiros e Let the Right One In encara-os com a seriedade que um monstro realmente merece. Somos abençoados com o terror que um verdadeiro vampiro deve causar. Sangue não falta e há cenas suficientemente assustadoras e doentias para nos manter atentos ao que possa estar ao virar da esquina.

Em geral, Let the Right One In tem tudo o que se possa querer num bom filme de terror, fascinante, original e arrepiante, com o seu toque especial que culmina numa das experiências mais satisfatórias dos últimos 10 anos no cinema de terror, daquelas que tão cedo não abandonam a nossa memória.


Título Original: Låt Den Rätte Komma In (Suécia, 2008)
Realizador: Tomas Alfredson
Argumento: John Ajvide Lindqvist
Intérpretes: Kåre Hedebrant, Lina Leandersson, 
Música: Johan Söderqvist
Fotografia: Hoyte Van Hoytema
Género: Drama, Romance, Terror
Duração: 115 minutos


El Orfanato (2007)


Descrever EL ORFANATO, de J.A. Bayona, numa só palavra levar-me-ia, talvez, a escolher "executório". Escoltando uma narrativa fantasista, linear e simplista, este é mais um título de Terror que não desaponta em teor de sustos, apesar do sentimento de monocromia que dele advém.


Em El Orfanato o espectador é convidado a acompanhar o mistério  em redor de um orfanato fechado por mais de uma década e reaberto por Laura (Bélen Rueda), ex-residente dessa instituição, que planeava torná-lo numa instalação para crianças com deficiência. Após decidir mudar-se com o seu filho adoptivo Simón e marido, Carlos (Fernando Cayo), começam as assombrações. Simón é uma criança de sete anos que afirma conseguir ver um menino que usa um saco como máscara chamado Tomás. Tomás denuncia a verdade a Simón acerca da sua mãe e comunica ainda que ele iria morrer.

Contando com a produção de  Guillermo del Toro, o filme apresenta elementos típicos que seriam de esperar pelo cineasta mexicano, desde o apelo à fantasia transmitido por todo um ambiente singular e único, invocações de aparições do oculto e cenários enigmáticos, até ao recurso a personagens infantis remetendo para a inocência das crianças enquanto catalisador empático, qual ponte metafórica entre o observador e a película. Não obstante, não pude deixar de sentir pela falta da expressividade visual e do ambiente característicos do mexicano.

Numa trama que tem mais de belo que de assustador, apesar de não padecer nesta última característica sempre que a vicissitude o demanda, a história atinge o seu clímax num final penoso, mas reconfortante. "Um conto de amor. Uma história de terror."


Título Original: El Orfanato (Espanha, 2007)
Realizador: J.A. Bayona
Argumento: Sergio G. Sánchez
Intérpretes: Belén Rueda, Fernando Cayo, Roger Príncep, Geraldine Chaplin
Música: Fernando Velázquez
Fotografia: Oscar Faura
Género: Drama, Mistério, Terror, Thriller
Duração: 105 minutos



segunda-feira, 27 de outubro de 2014

El laberinto del Fauno (2006)


Não é preciso procurar muito a fundo na filmografia de Guillermo del Toro para perceber que, a dada altura, a guerra se tornou um dos seus principais motores. E que a dimensão da guerra acompanha, em regra, o crescendo dos próprios filmes: à guerra civil espanhola seguiu-se a entre o Bem e o Mal, parando-se, por agora, numa autêntica guerra inter-dimensional. E é exactamente por esse motivo que EL LABERINTO DEL FAUNO surge como um passo algo anacrónico - e deslocado - no percurso do mexicano. Desde logo, porque se intromete entre duas adaptações de comics (e lá está o confronto entre o Bem e o Mal, entre a Humanidade e os monstros), retomando o pano que serve de fundo a El espinazo del Diablo (a diferença entre as duas obras prender-se-á, fundamentalmente, com as feridas ainda estarem abertas em El laberinto, enquanto que El espinazo se encontram já em processo de cicatrização). Mas, e mais importante ainda, também porque quebra a natural tendência de expansão em relação às produções que o emolduram, assumindo-se, à primeira vista, como uma guerra "menor".


Contudo, indiferente a essas questões, El laberinto apresenta-se como o melhor filme que del Toro assina em nome próprio. Ou, para os que não o vêem como tal, pelo menos como o mais humanista e pessoal do espólio. Note-se que a verdadeira luta se faz pela preservação da inocência de Ofelia - e, nesse sentido, não deixa de ser curioso um dos significados atribuídos por del Toro ao labirinto, enquanto símbolo da viagem espiritual da protagonista: «I can ascribe two concrete meanings of the labyrinth in the movie. One is the transit of the girl towards her own center, and towards her own, inside reality, which is real. [...] And I have found that [the inner] reality is as important as the one that I’m looking at right now». O próprio Vidal parece admiti-lo ao desvalorizar a resistência dos republicanos, que mais cedo ou mais tarde seriam vencidos, escolhendo debruçar-se, gradualmente, na que lhe é oferecida pela sua enteada.

Poderíamos argumentar que a mesma luta interior/exterior do/pelo protagonista se estende aos restantes trabalhos de del Toro - e, julgo, não seria disparate nenhum, vejam-se os casos de Hellboy com a sua natureza demónica, de Blade com o vampirismo, ou de Becket, de Pacific Rim, com a morte do seu irmão -, mas em El laberinto aproxima-se mais do público pela dimensão mais reduzida do ambiente que a rodeia.

Será essa a grande virtude de El laberinto (que advém, exactamente, da maior concentração espacial/pessoal): del Toro, que sempre foi mais storyteller do que director de actores, mostra-se capaz de construir personagens de raiz como nunca antes o tinha feito (e como nunca o voltou a fazer desde então). É essa a essência da fábula que desenha, a relação que as personagens, reais e/ou imaginárias, estabelecem entre si. Não será, pois, por acaso que o Fauno entra em cena como um peão absolutamente ambíguo, de intentos insidiosos, algures entre o maniqueísmo da realidade fora da qual existe: é ele o símbolo máximo da batalha travada entre a imaginação de Ofelia e a pressão dos que tentam que ela a abandone.

Devido a essa simbologia e ambiguidade constantes, bem como por o ter visto (e sentido) inúmeras vezes, é-me mais complicado escrever sobre El laberinto do que sobre qualquer outro dos títulos de del Toro. A interpretação do seu conteúdo dependerá, em muito, do que cada um escolha ver e entender daquele universo perdido entre árvores e ruínas. Se é brilhante? Sempre acreditei que sim. Mas mesmo que não o seja, a capacidade demonstrada em esbater barreiras - entre géneros, entre mundos, e, sobretudo, entre pessoas - torna-o um filme de público, hábil em reunir paixões e seguidores. E, parece-me, para del Toro tanto já bastará.


Título Original: El laberinto del Fauno (Espanha/EUA/México, 2006)
Realizador: Guillermo del Toro
Argumento: Guillermo del Toro
Intérpretes: Ivana Baquero, Segi López, Maribel Verdú, Doug Jones, Ariadna Gil
Música: Javier Navarrete
Fotografia: Guillermo Navarro
Género: Drama, Fantasia, Guerra, Terror
Duração: 118 minutos