Desengane-se o leitor que, ao ler o título da mensagem, pensou que se escreveria aqui da crise em que o país se encontra mergulhado. Escreve-se antes de chicotadas cinéfilas, pequenas constatações mais ou menos óbvias nas quais fomos tropeçando ao longo do ano. Breves ingenuidades que mantínhamos em relação Cinema e que se foram dissipando com o volume de filmes visto.
A primeira - e talvez a mais importante - foi a do absurdo que é escrever sobre Cinema. Ou, aliás, não tanto do absurdo, mas da impossibilidade de o fazer com total objectividade. Cada filme que se vê - seja blockbuster ou de autor, bom ou mau, extraordinário ou comezinho - alimenta-se de um pouco de quem o vê, revelando-se, antes de mais, uma experiência subjectiva. Claro que há guidelines, considerações a ter em conta quando se julga um filme, mas, no fundo, o que importa é a nossa própria - e muito pessoal - experiência sobre o que se assistiu. Quiçá por isso seja importante reiterar que nada do que se publica neste espaço tem carácter categórico ou qualquer pretensão de verdade absoluta, correspondendo apenas à análise individual de vários objectos. Seguem-se as restantes lombas.
O tempo não dá tempo.
Infelizmente é verdade. O tempo prossegue indiferente às vontades de quem o vive, e é quando mais se precisa das horas que mais depressa elas se esgotam. Quem gosta de Cinema - e particularmente quem tem como actividade, mesmo que amadora, escrever sobre ele - conhece a seriedade do problema e as limitações por ele impostas. Se de um lado há a necessidade de ver o maior número de obras possível, do outro sobra a certeza de que a pressa é inimiga da perfeição. Se se visualizam muitos filmes, ainda mais ficam por visualizar. 2012 foi o ano em que a condição se fez sentir com maior gravidade entre os membros da redacção, levando a que algumas obras de renome escapassem ao nosso olhar crítico. Fitas como O GEBO E A SOMBRA, de Manoel de Oliveira, ou DESTE LADO DA RESSURREIÇÃO, de Joaquim Sapinho, constam dessa lista, entrando e saindo de sala este ano sem que, infelizmente, as tivéssemos visto. E nem consideramos os filmes visualizados por apenas um ou dois de nós, caso contrário o rol não teria fim.
Cobrir um festival é cansativo.
Este foi um falso-tropeção: que cobrir um festival era tarefa cansativa já nós imaginávamos, só não contávamos que fosse tanto. Mas vale a pena. No ano em que o Matinée Portuense realizou a sua primeira cobertura intensiva - ou extensiva, conforme a preferência - de um festival, os seus editores sentiram na pele as mazelas de assistir a três ou quatro filmes por dia. Não que a empresa seja particularmente dramática - e também não será caso para tanto, ou não haveria ninguém, excepto masoquistas, a seguir festivais -, mas deixa algumas marcas. Permite, no entanto, a descoberta de algumas pérolas cinematográficas que, não fosse a sua presença nestes certames, passariam despercebidas ao público nacional. Caso, por exemplo, de EL ARTIFICIO, de Jose Enrique March, merecedor de elogios pela sua invulgar magia e amor à Arte.
A shaky camera raramente resulta de acordo com o pretendido.
Mas parece que há cada vez mais gente a achar o efeito engraçado. Principalmente realizadores com poucas obras no currículo - e uns quantos mais experientes - que se vêem à frente de filmes de acção e/ou terror. E se é verdade que em 2012 funcionou em prol de algumas fitas que dela fizeram uso - CHRONICLE, de Josh Trank e PROJECT X, de Nima Nourizadeh -, também o é que foram mais os casos em que a intenção saiu gorada. Escreve-se, entre outros, de THE HUNGER GAMES, de Gary Ross, de V/H/S, antologia de Terror, ou de RED DAWN, de Dan Bradley, cuja tremedeira incessante prejudicou o acompanhamento da acção. Pedia-se mais estabilidade.
O Cinema Português merece ser visto com olhos de ver.
E em sala, de preferência. Num dos seus melhores anos de sempre, com alguns filmes a receberem prémios e aclamação da crítica estrangeira, o Cinema Português provou a impossibilidade de ser encaixotado como um todo nos estereótipos acerca dele mantidos, muitas vezes pelos próprios portugueses. Acabou-se - ou deveria ter acabado - aquela noção dos filmes muito parados e monótonos, feitos a uma só velocidade; ou a de que os filmes lusos eram só mulheres nuas e homens rudes tentados por elas. Claro que ainda há fitas que se inserem nesses dois tipos, é verdade, mas quem se deu ao trabalho de comprovar encontrou em 2012 muitos - e bons - filmes que fogem à(s) regra(s). Dos vistos, de destacar TABU, de Miguel Gomes, e FLORBELA, de Vicente Alves do Ó; nas co-produções contam-se ainda os muito razoáveis COSMOPOLIS, de David Cronenberg, e BONSÁI, de Cristián Jiménez. Por isso, impõe-se a pergunta: em ano de qualidade acima da média, por que razão foram BALAS & BOLINHOS - O ÚLTIMO CAPÍTULO, de Luis Ismael, e MORANGOS COM AÇÚCAR - O FILME, de Hugo de Sousa - e não colocando em causa o mérito relativo de ambos -, os filmes nacionais com mais espectadores durante 2012? Pedia-se, novamente e como já é hábito, mais.
Filmar sobre Cinema não implica, obrigatoriamente, filmar filmes.
Tudo bem, admito que a epígrafe possa ser confusa. Mas pareceu-me o título adequado para a reflexão em causa e assim ficou. 2012 continuou a tendência manifestada activamente em 2011, a de prestar homenagem ao Cinema através do Cinema. Nada contra a (boa) intenção, mas todos sabemos que delas está o Inferno cheio. Provou-se uma vez mais que a subtileza costuma ser o melhor caminho a seguir. Assim, e sem grande surpresa, filmes como BLANCANIEVES, de Pablo Berger, e HOLY MOTORS, de Leos Carax, encantaram-nos mais do que THE ARTIST, de Michel Hazanavicius, e MY WEEK WITH MARILYN, de Simon Curtis, por exemplo, que esparramaram o seu objectivo por toda a obra.
Quem sabe o que faz nunca esquece como o fazer.
Leos Carax voltou às longas-metragens depois de treze anos de interregno, Manoel de Oliveira, Ridley Scott, Chantal Akerman, Alain Resnais e Michael Haneke mostraram o porquê de serem considerados alguns dos melhores naquilo que fazem. E depois há Abel Ferrara, o mais herético dos católicos, que se esmerou, colocando dois filmes - GO GO TALES e 4:44 LAST DAY ON EARTH - no top anual da Cahiers du Cinéma. Valendo o que vale - até porque um dos títulos data de 2007 -, é razão suficiente para lhe(s) bater palmas.
E por último, e já em jeito de apêndice, a mais óbvia das verdades relembradas:
Nem só de excrementos (e demais fluídos) pode viver um filme.
Não pode, nem deve querer fazê-lo. Porque se a graçola ainda cola durante os primeiros minutos - como em ZOMBIE'S ASS, de Noboru Iguchi -, depressa vai perdendo interesse ao longo do filme. Mas o pior acontece quando uma fita que faz uso desses mecanismos, quer pelas (duvidosas) potencialidades cómicas, quer pelas dramáticas, deseja ser levado a sério. Assobiando para o ar, aponta-se na direcção de THE PAPERBOY, de Lee Daniels, abjecto e frustrado na sua tentativa de chocar, conseguindo apenas provocar certo aborrecimento na audiência. Terá sido, porventura, a chicotada mais desagradável de levar.
António Tavares de Figueiredo
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