quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Na casa de Wan

 
2013 foi um ano em grande para James Wan. Desde logo, porque estreou os seus dois melhores filmes até à data - THE CONJURING e INSIDIOUS: CHAPTER 2. Mas, sobretudo, porque finalmente alcançou o estatuto de virtuoso da câmara que lhe vinham preconizando há algum tempo (o de mestre do Terror contemporâneo, esse, já não é de agora). Impõe-se, portanto, duas perguntas relevantes no tocante aos seus trabalhos mais recentes: 1) poderão os dois tomos de Insidious e The Conjuring ser vistos como um tríptico da casa assombrada?; e 2) haverá algo que se assemelhe, hoje em dia, a um raccord tipicamente Waniano?


O tríptico

A defensabilidade dos dois capítulos de Insidious + The Conjuring enquanto tríptico depende da aceitação, ou não, do espaço enquanto catalisador primeiro do Terror no Cinema de Wan. Ricardo Vieira Lisboa, na sua crítica a Insidious: Chapter 2, argumenta nesse sentido, estabelecendo um paralelo entre o australiano e Tobe Hooper. Mais, o próprio Wan parece, outrossim, mover-se na mesma direcção quando explora o espaço tão minuciosamente - e exemplo cabal dessa sua característica será o plano-sequência de The Conjuring que segue a família em mudanças até às traseiras da casa.

Essa abordagem ao espaço, enquanto portal do medo, e que se inicia fundamentalmente em The Conjuring (já dava sinais de vida em Insidious, mas era demasiado rudimentar), assinala uma das características mais entusiasmantes do trabalho recente de Wan: a compreensão da dicotomia visível/invisível, e a sua utilização em conformidade com o pretendido. Note-se que a passagem entre os dois mundos em Insidious: Chapter 2 se faz, amiúde, apenas às custas do nevoeiro e de uma mudança de iluminação, sem recurso a cortes ou efeitos digitais; ambas as dimensões coexistem no mesmo lugar, diferenciando-se na capacidade das personagens (e do público) as apreenderem. O invisível está, afinal, escondido à vista de todos.

É esse o maior dos piscares-de-olho de Wan ao espectador, a noção de que o seu Terror só acontece entre portas. As suas assombrações necessitam de uma âncora física para se manifestarem, de algo no visível que as veicule e lhes permita existir. A tendência não é nova: em Videodrome, de Cronenberg, e Sinister, de Scott Derrickson, já o Mal existia no formato físico do filme; em Wan, como em Ti West (e lembrando The Innkeepers), reside no espaço em que se desloca.

Não será, portanto, tão descabido quanto isso entender as três obras mais recentes de Wan como pertencentes a um mesmo universo, e percorrê-las no conjunto, mais do que de forma temática e intuitiva, pela importância atribuída à(s) casa(s) das personagens. Assim se percebe melhor a abundância de planos invertidos a 180º em The Conjuring e de planos-gémeos em Insidious: Chapter 2. No fundo, trata-se de uma dupla inversão, com Patrick Wilson à cabeça: a primeira, de Insidious para The Conjuring, inverte Wilson de vítima para adversário do Mal; a segunda, de The Conjuring para Insidious: Chapter 2, retorna-o ao ponto de partida, convertendo-o em agressor. É nessa relação que a obra de Wan ganha em inteligência à dos seus pares, e se descola dos seus primeiros trabalhos.


O raccord Waniano

Mas se é verdade que o percurso entre as três obras se pode fazer de forma temática ou de acordo com a importância atribuída à figura da casa, também o será que é possível fazê-lo atendendo ao conjunto de mecanismos que Wan vai empregando - e aprimorando - no seu decurso.

E esse será, porventura, o critério segundo o qual se torna mais notório o desenvolvimento da dialéctica fílmica do realizador australiano. Se Insidious esgotava frequentemente a sua desmesurada ambição técnica em meras inconsequências - e já por  defendi essa minha opinião -, o mesmo não acontece com os dois filmes que lhe sucederam: há agora uma preocupação constante de Wan em trabalhar enquadramentos e planos (uma preocupação apenas comparável, talvez, à de Ti West, no actual panorama do género), tentando impregnar cada um com o devido significado.

Exemplo perfeito desse esforço será, além do plano-sequência de The Conjuring já descrito no ponto anterior, a brilhante desmultiplicação temporal operada numa cena de Insidious: Chapter 2: a mãe ouve, anacronicamente, e através do baby monitor, a chapada que irá receber um par de planos adiante. Essa antecipação do momento do susto - que, mais à frente, aparece invertida com a explicação, a posteriori, da abertura das portas - é mais uma razão para a admissão de Wan como um dos virtuosos do género.

Repare-se, contudo, que não se trata de um abandono completo das ideias antigas; antes, Wan procede a uma triagem, separando as boas das más (ou as que percebeu que resultavam, ou poderiam resultar, das que não tinham cabimento), refinando os seus predicados estilísticos.

[Motivo pelo qual a falta de inspiração quase absoluta de Annabelle, de John R. Leonetti, causa ainda mais espécie. Leonetti, que trabalhou no tríptico enquanto director de fotografia, não foi capaz de transpor as boas ideias encontradas por Wan quando se viu sozinho em tarefas de direcção, esvaziando-as em lugares-comuns e inocuidades.]

O raccord (tipicamente) Waniano acaba por ter razão de ser afirmado a partir do momento em que se entendem essas características - a ausência de cortes, a elegância na movimentação da câmara, o anacronismo na apresentação do susto à audiência e uma certa independência em relação aos jump scares - como peculiares do realizador. E Wan afigura-se, assim, juntamente com West, como um dos grandes executantes e exegetas - não haverá neles uma obsessão com a descoberta da origem do medo? - do Terror moderno, fazendo esquecer os "desastres" de início de carreira. Agora é esperar para ver se o seu talento encontra lugar para continuar a existir.


Título Original: The Conjuring (EUA, 2013)
Realizador: James Wan
Argumento: Chad Hayes, Carey Hayes
Intérpretes: Vera Farmiga, Patrick Wilson, Lili Taylor, Ron Livingston
Música: Joseph Bishara
Fotografia: John R. Leonetti
Género: Terror
Duração: 112 minutos


Título Original: Insidious: Chapter 2 (Canadá/EUA, 2013)
Realizador: James Wan
Argumento: Leigh Whannell, James Wan
Intérpretes: Patrick Wilson, Rose Byrne, Ty Simpkins, Lin Shaye, Barbara Hershey, Steve Coulter
Música: Joseph Bishara
Fotografia: John R. Leonetti
Género: Terror, Thriller
Duração: 106 minutos

2 comentários :

  1. Leitura muito interessante. Realmente, acho que o Wan se tem tornado cada vez mais interessante, sendo o Saw o seu pior trabalho.

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    1. Acho, sobretudo, que o Wan aprendeu a pensar melhor os seus filmes, que desenvolveu uma melhor imagem mental do que seriam/serão os seus filmes. E que, ao desenvolver essa linha de pensamento, conseguiu aproximar o resultado do desenho pretendido. A ver, agora, como fará a transição para as suas obras futuras.

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