Bastam poucos minutos (e os créditos inciais, dos melhores que têm aparecido nos últimos anos) para perceber que este Drive se encontra demasiado longe dos blockbusters de carros lançados na última década para ser confundido com eles. Esqueçam as corridas ilegais e os carros modificados para lá do razoável. Drive assemelha-se mais a um bom velho filme dos anos 80, às velhas fitas de golpadas que correm mal, a um road movie numa Los Angeles que dificilmente reconheceremos de outras produções.
Ryan Gosling é o Condutor. Mecânico e duplo de cinema durante o dia, à noite vai ganhando a vida como motorista de ladrões e criminosos. Não tem nome, não participa nos golpes, não anda armado. Só conduz. Rodeado por gente de moralidade duvidosa, vive isolado no seu próprio mundo, marginalizado por escolha própria. Até que conhece a sua vizinha, Irene (Carey Mulligan), e o filho dela, Benicio. A aproximação entre os três é quase instântanea, e, por breves momentos, o Condutor chega mesmo a considerar mudar de vida. Só que o marido de Irene, Standard (Oscar Isaac), sai da prisão e volta para junto da sua família. Endividado, Standard é obrigado por um grupo de rufias a assaltar uma casa de penhores. Com a segurança de Irene e Benicio em risco, o Condutor decide ajudá-lo. Só que o golpe não corre como o esperado, colocando a máfia no encalço do Condutor e daqueles que lhe são próximos.
Não vale a pena negar, Gosling é a grande estrela do filme. O que, tendo em conta o seu percurso nos últimos anos, já não deverá surpreender ninguém. A sua figura de justiceiro implacável imerso numa mitologia hollywoodesca que ele próprio criou funde-se facilmente com a da cidade onde a fita se passa, coberta de escuridão e violência. O actor canadiano junta à sua versatilidade como intérprete uma boa dose de carisma, tornando fácil esquecer o exagero ocasional na caracterização da aura de mistério que rodeia o seu Condutor. Curiosamente, é o segundo filme consecutivo realizado por Refn em que a personagem principal pouco ou nada fala. Será coincidência? O resto do elenco vai aparecendo bem, quando pode, e, sobretudo, quando Refn e Gosling deixam. Carey Mulligan, que à semelhança de Gosling vem consolidando a sua carreira de actriz nos últimos tempos, aparece em bom plano, leve e inocente como de costume. Bryan Cranston (cara facilmente reconhecível de séries televisivas como Malcolm in the Middle e Breaking Bad) mostra toda a vulnerabilidade da sua personagem, também ele encantado com os talentos do seu Condutor. Albert Brooks e Ron Perlman têm o mérito de interpretar quase na perfeição um par de vilões sem moral, capazes de tudo para apagar os seus erros. O primeiro vai-se tornando cada vez mais sombrio ao longo da obra, o segundo, ressentido com a chefia da máfia, sádico e vingativo desde a primeira vez que lhe pomos a vista em cima.
Primeiro Cannes. Depois o Mundo. Por último, Hollywood. Drive é uma fita atípica, quase à imagem do seu realizador, Nicolas Winding Refn. O dinamarquês realiza como poucos, trabalhando minuciosamente o posicionamento das câmaras, criando planos e enquadramentos duradouros, capazes de persistir na memória de quem vê as suas obras. É também um dos melhores a representar emoções sem recorrer a diálogos. Bom exemplo disso mesmo será a cena do beijo no elevador, com as luzes a aumentarem de intensidade, varrendo as sombras dos protagonistas da imagem (terá sido o exorcizar dos demónios pessoais do Condutor?). A fotografia de Newton Thomas Sigel é deslumbrante, rica em cores fortes e saturadas, ajudando a construir a iconografia da fita, alicerçada na estética cinematográica de outros tempos devidamente transportada para a tela contemporânea. Tudo servido com excepcional banda sonora da autoria de Cliff Martinez, colaborador frequente de Steven Soderbergh e antigo baterista dos Red Hot Chili Peppers, dominada por sonoridades electrónicas a remeterem para outras décadas, perfeitas para o ambiente nocturno do filme.
É fácil estabelecer paralelos entre Drive e obras como Taxi Driver ou até mesmo Pulp Fiction. Traços de Lynch e de De Palma também não serão complicados de encontrar no trabalho de Refn. O cineasta dinamarquês foi beber a várias fontes em busca de inspiração, sendo notável o resultado alcançado. Mesmo com todas as referências a outros grandes nomes da sétima arte, Drive consegue manter a sua própria identidade, dificilmente quedando em segundo para qualquer outra fita do género. Pelo caminho Refn recebeu o prémio de melhor realizador em Cannes e a fita uma nomeação para Oscar (Melhor Edição de Som). Mais do que as dezenas de fotogramas belíssimos e as quatro ou cinco cenas memoráveis, Drive vale pela sua hora e meia na íntegra. Não será de estranhar que ganhe estatuto de culto num futuro próximo. Por agora, chegará dizer que é do melhor cinema produzido em 2011.
Título Original: Drive (EUA, 2011)
Realizador: Nicolas Winding Refn
Argumento: Hossein Amini (baseado no livro de James Sallis)
Intérpretes: Ryan Gosling, Carey Mulligan, Bryan Cranston, Albert Brooks, Ron Perlman, Oscar Isaac, Christina Hendricks
Música: Cliff Martinez
Fotografia: Newton Thomas Sigel
Género: Acção, Crime, Drama, Thriller
Duração: 100 minutos