quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

É Natal

Narizes a pingar, camisolões de lã, luvas, gorros, mantas nos sofás, lareiras acesas, os Aliados iluminados - não há como enganar, já é Natal. Tempo de família e dos presentes, de bem-aventurança entre os homens. E de Cinema, de Cinema do bom e do melhor, como não poderia deixar de ser.

Pois bem, nós também temos os nossos presentes, de nós para os outros, de cá para o amigo leitor. E como o Natal é época de partilha, o que vai deste embrulho não poderia deixar de ser os nossos filmes de Natal que, por um motivo ou outro, por todos ou por nenhum, queremos (e gostamos) de partilhar. Filmes de Natal, que não conseguimos ver noutra altura do ano senão nesta. Leituras leves, esporádicas e episódicas, para ler antes, durante ou depois da consoada, sobre as obras que trazem à memória da redacção o cheiro a rabanadas e a aletria. Bom Natal!


GREMLINS, de Joe Dante (EUA, 1984)

A minha tradição natalícia sempre foi muito consistente, uma casa cheia de familiares, uma mesa de jantar recheada de guloseimas e a ânsia pelas prendas, escondidas no armário e debaixo da cama. No entanto, o mais esperado era as programações de Natal da TV, dias 24 e 25 repletos de filmes, das 3 da tarde até à meia-noite. Relembro agora Mousehunt, Home Alone e Problem Child, três filmes com lugares marcados no Natal, mas nenhum tão marcante como GREMLINS. Algo nos pequenos monstros parecia cativar a família toda, talvez o único filme que todos viam do inicio ao fim.

Uma história sobre responsabilidade e as repercussões que advêm de quebrar certas regras. Gremlins proporcionam momentos de diversão face às travessuras caóticas, numa época onde todos temos de ser bem comportados. O óptimo balanço entre comédia e terror torna impossível não simpatizar-mos com as pequenas bestas. Certamente o meu filme de natal predilecto, filme que irei revisitar amanhã acompanhado pela família e uma travessa de aletria.  

Wladimir Jr. Ribeiro


HOW THE GRINCH STOLE CHRISTMAS, de Ron Howard (Alemanha/EUA, 2000)

Chegada a época natalícia, é difícil esquecer um filme tão carregado de símbolos natalícios como HOW THE GRINCH STOLE CHRISTMAS, de Ron Howard, uma comédia de fantasia adaptada do livro de Dr. Seuss. Na terra de Whoville habitam os Whos que adoram o Natal, no entanto, fora da cidade vive o Grinch, uma criatura que o odeia e engendra vários planos para o roubar.

É difícil não sentir compaixão pelo vilão Grinch, certamente devido à qualidade da representação de Jim Carrey, que, ironicamente, acaba por roubar o filme também, transformando-o numa hilariante comédia para ver em família.

João Nuno Pratinha


IT'S A WONDERFUL LIFE, de Frank Capra (EUA, 1946)

Chega o Natal e pareço logo um disco-riscado: mas qual Home Alone, qual quê, é preciso é ver o IT'S A WONDERFUL LIFE! E é preciso vê-lo urgentemente, não vá a quadra esfumar-se sem que haja a oportunidade de o (re)encontrar, fazendo-nos esperar pelo próximo ano. Que isto de ver filmes de Natal fora de época não tem jeitinho nenhum - e para os restantes onze meses haverá outros tantos Capras, cada qual mais belo do que o anterior, mas nenhum tão belo quanto este. A estória já todos a conhecem de cor, mas vale a pena recordar (e resumir): George Bailey (o incontornável James Stewart) é um homem tão bom, mas tão bom, que todos fazem dele gato-sapato, principalmente o diabólico Mr. Potter de Lionel Barrymore. Até que, ao perder o seu dinheiro, se decide mandar de uma ponte e conhece Clarence, um anjo de segunda, que lhe recorda tudo o que há de bom na vida (e tudo o que haveria de pior, não fossem homens como ele).

George/Jimmy é - e os protagonistas de Capra são-o todos à sua maneira - o melhor dos homens, profundamente marcado pelo Humanismo do italo-americano. Sacrificando tudo o que é seu pelos amigos (e não seremos todos amigos de George?), é quando se prepara para sacrificar o que de último tem, a vida, que se apercebe que o sacrifício não tira apenas, também dá - e já cantava Johnny Cash «The wealthiest person is a pauper at times, compared to the man with a satisfied mind». É esse o presente maior de It's a Wonderful Life, panaceia para todas as dores do ano, todo o Cinema desse grande senhor, docemente embrulhado, e muito bem embrulhado, por sinos, anjos e, sobretudo, gente que nos ama como só Capra nos foi capaz de amar. «Remember, George: no man is a failure who has friends» - é uma vida maravilhosa, lá isso é.

António Tavares de Figueiredo

domingo, 14 de dezembro de 2014

Sunday Stills #56: "Les amours imaginaires"


Na semana de estreia em sala do mais recente filme de Xavier Dolan, recordamos o seu LES AMOURS IMAGINAIRES. Rapaz e rapariga, rapaz e rapaz, triângulos, rectas, círculos, o real e o imaginário.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Godzilla, a Lenda II

Godzilla vs Zilla

GODZILLA, de Robert Emmerich, foi a primeira reimaginação do original de 1954 para o público internacional. Com um monstro maior, mais amistoso e geralmente menos ameaçador. Tão distante do seu predecessor que também é apresentado em GODZILLA: FINAL WARS, como Zilla, "o monstro que os americanos achavam ser Godzilla".


Podia reflectir bastante sobre as mudanças abruptas que esta personagem sofre nas suas longas-metragens, como a sua personalidade e o próprio aspecto físico sofrem alterações constantes. Mas não vale a pena, a única mudança digna de nota é a do Godzilla de Emmerich, um filme que falha em muitos aspectos, seja o argumento imbecil ou as personagens irritantes. No entanto, a adaptação de 1998 incomoda-me, em primeiro lugar, com o design pouco imaginativo do monstro. A influência de Jurrassic Park (1993) é mais que clara, até somos presenteados com grupo maior, mais hilariante de velociraptors, Godzilla é reduzido uma lagartixa gigante (T-Rex?), tão ameaçadora como uma iguana domestica. Antes uma personagem orgulhosa, agora um simples animal selvagem que só chateia por ser grande.

Godzilla pode ter alterado a identidade do rei dos monstros, mas dificilmente será esse o único motivo do fracasso que é o filme. O argumento é medonho, ninguém parece saber o que está a fazer, as personagens têm demasiados momentos de completa morte cerebral, e Jean Reno no papel de francês condescendente, magnifico. Emmerich faz um trabalho menos que medíocre, já pouco espero dele, mas ainda assim me desilude, sequências tão incoerentes e noções absurdas de espaço não me permitem desfrutar deste filme. Não se trata de ser ou não um filme do Godzilla, obviamente não é, trata-se, sim, de uma fraca tentativa a um filme cómico e trágico, que não é cómico nem trágico. Apenas um autêntico aborrecimento.

Um Último Confronto

Felizmente, o Zilla não durou muito e uns anos mais tarde Godzilla surge por uma última vez, para afirmar a sua posição dominante como Rei dos Monstros. Num guerra em grande escala com os seus maiores inimigos, Godzilla: Final Wars, de Ryûhei Kitamura, relembra-nos do que realmente resplandece nos filmes do seu franchise, puro divertimento. Antes do novo reboot da Legendary Pictures tomar as rédeas, Final Wars promete diversão caótica e disparatada, sem preocupações.


As suas raízes de destruição insensata já foram abandonadas à muito, Godzilla luta para proteger o mundo, a qualquer custo. Desta vez, contra extraterrestres que o querem conquistar, e os seus monstros de estimação. Juntamente com a Earth Defence Force, nenhuma cidade está a salvo da destruição que se avizinha. Derrotando um a um, à volta do planeta, Godzilla é rápido e determinado, até ter de enfrentar o mais forte dos seus adversários, Monstro X. - Entretenimento garantido à custa de integridade. Mas devíamos ter de nos preocupar com tais trivialidades? Tendo em conta o que já sabemos que vamos ver. Acredito que não.

Talvez a adaptação de 1998 perca ainda mais pela falta de consciência dos seus objectivos. Enquanto Final Wars ganha, na medida em que é objectivo nas suas intenções e não promete para lá disso. Penso que, quando todo o franchise foi direccionado para o público mais novo, tornou-se mais complicado revertê-lo às suas origens mais maturas e Godzilla (1998) sofreu por isso. Aí Final Wars lembra, antes de mais, os disparatados cartoons e anime, com o que realmente gostávamos de ver quando éramos mais novos. Um exercício em nostalgia - a melhor maneira que tenho para o descrever - que rapidamente se engrena com as vinte e muitas memórias anteriores.


Título Original: Godzilla (EUA/Japão, 1998)
Realizador: Roland Emmerich
Argumento: Dean Devlin, Roland Emmerich
Intérpretes: Matthew Broderick, Jean Reno, Maria Pitillo, Hank Azaria, Kevin Dunn, Michael Lerner
Música: David Arnold, Michael Lloyd
Fotografia: Ueli Steiger
Género: Acção, Ficção Científica, Thriller
Duração: 139 minutos


 

Título Original: Gojira: Fainaru uôzu (Japão/Austrália/China, 2004)
Realizador: Ryûhei Kitamura
Argumento: Isao Kiriyama, Ryûhei Kitamura, Wataru Mimura, Shogo Tomiyama
Intérpretes: Masahiro Matsuoka, Rei Kikukawa, Don Frye, Maki Mizuno, Kazuki Kitamura, Kane Kosugi
Música: Keith Emerson, Nobuhiko Morino, Daisuke Yano
Fotografia: Takumi Furuya
Género: Acção, Aventura, Ficção Científica
Duração: 125 minutos


quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Godzilla, a Lenda I

Com cerca de 60 anos de existência, mais de 40 horas no grande ecrã e um total de 29 filmes, Godzilla tornou-se num ícone gigantesco da cultura japonesa. Inicialmente retratado como uma ameaça, subsequentemente alternando entre os papeis de herói e anti-herói, Godzilla sofreu grandes mudanças ao longo do tempo, salvando e destruindo a Humanidade como bem lhe aprouver. 


Um monstro, produto da arrogância do Homem e um símbolo alegórico referente ao uso de armas nucleares, instável, massivo e altamente destrutivo. Godzilla oferece momentos de bom entretenimento, algumas confusões disparatadas e destruição em grande escala. Para lhe fazer uma pequena homenagem vou então falar um pouco sobre este símbolo e o seu trajecto, a sua história, num formato que parece agradar todos hoje em dia, uma trilogia.

O Inicio 

«Now i am become death, the destroyer of worlds»

- Bhagavad-Gita

GOJIRA, de Ishiro Honda, juntamente com King Kong (1933), são os pioneiros dos filmes de monstros gigantes, verdadeiras obras do cinema cujo sucesso ainda é explorado. Dando vida ao monstro mais reconhecido mundialmente, Gojira é o começo de uma longa lista de filmes, séries de TV, jogos, brinquedos, roupa e, basicamente, tudo onde se possa colocar Godzilla. O Rei dos Monstros provou-se contra tudo e todos, e parece que nem o tempo é obstáculo para impedir, ou até mesmo debilitar, o seu poder.

A premissa é bastante simples. O uso de armamento nuclear enfurece e fortalece uma antiga criatura, conhecida como Godzilla. Este ataca incessantemente a população de Tokyo, apesar dos esforços para o impedir. Sem nenhuma fraqueza aparente, Godzilla possui um poder catastrófico e sacrifícios terão de ser feitos para salvar a humanidade. 

A maior questão será - o que faz este filme ser tão bom? O seu entre-linhas que espelha o trauma do povo japonês pós-2º Guerra Mundial, causado pelos americanos. Ou a sua qualidade como um filme, como sendo interessante, com uma execução bastante boa e capaz de entreter? Embora o seu ritmo seja inconsistente, ocasionalmente lento demais, seria fácil achar que talvez a mensagem inerente fosse a razão, mas a verdade é que não temos que analisar tão fundo para realmente apreciar este filme.

Acredito que Gojira vale, em primeiro lugar, pela sua qualidade como filme, algo que se perde nas restantes sequelas. Pode não ser o melhor filme, mas funciona como um bom filme de terror/sci-fi e entretém do início ao fim, com um uso inteligente e eficaz de efeitos visuais, numa época onde ainda não éramos abençoados com a magia do CGI. Aí é onde este filme se destaca com a sua própria magia.


Título Original: Godzilla (Japão, 1954)
Realizador: Ishirô Honda
Argumento: Takeo Murata, Ishirô Honda, Shigeru Kayama
Intérpretes: Akira Takarada, Momoko Kôchi, Akihiko Hirata, Takashi Shimura, Fuyuki Murakami
Música: Akira Ifukube
Fotografia: Masao Tamai
Género: Terror, Ficção-Científica, 
Duração: 98 minutos
 

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Fui ao Porto/Post/Doc revisitar fantasmas

Aproveitei o feriado para fazer o que costumo fazer nos dias úteis: meter-me numa sala a ver filmes. Mas, calma lá, que não foram uns filmes quaisquer, nem numa sala qualquer. Aproveitei o feriado para me enfiar no Rivoli, que acolhe por estes dias o Porto/Post/Doc, o novo festival da cidade, a ver documentários. A ocasião, de resto, pareceu-me propícia: desde logo, porque o tempo não dá tempo, que é como quem diz, há que aproveitar os momentos de ócio que o calendário nos oferece para frequentar eventos destes; depois, porque há qualquer coisa na expressão "Imaculada Conceição" que me lembra Manuel Mozos e João Bénard da Costa, o prato forte do dia.

Aproveitei também a ocasião - esta rebarbada e episódica cobertura ao festival, longe da prisão dos passes de imprensa - para revisitar fantasmas de outros tempos. Das sessões no Pequeno Auditório do Rivoli, dos corredores e cadeiras que já me acolheram mil sonhos, do cheiro do foyer onde travei outras tantas amizades. Contas de outros rosário (festival?), portanto.

Voltemos, no entanto, ao Porto/Post/Doc, que é uma maneira bem mais simpática de dizer "ao que interessa". E que aqui o que nos interessa - e se interessa! - são os filmes. Até 13 de Dezembro, o Rivoli (bem como o Maus Hábitos e o Passos Manuel) recebe esta bela iniciativa, ainda com aroma a novidade, com base (quase) exclusivamente documental, e que dobra como o evento mais interessante a decorrer na cidade pelos dias que correm - a malta da patinagem no gelo aqui ao lado que me perdoe a sinceridade. Vamos lá, então.


WAITING FOR AUGUST, de Teodora Ana Mihai (Bélgica/Roménia, 2014):

Os anglo-saxónicos têm uma palavra, simultâneamente bela e desoladora, que descreve na perfeição o primeiro plano de WAITING FOR AUGUST, de Teodora Ana Mihai: bleak. Não duvido que haja na nossa língua um sinónimo oportuno, mas aquelas cinco letras enquadram-se naquela estrada destingida pela neve e pelo asfalto, ocasionalmente pontuada pelos amarelos das luzes e pelos vermelhos dos sinais. Após esse intróito, pouca esperança se afigura para o que sobra do filme.

Todos os anos, milhares de pais romenos abandonam o país em busca de trabalho, deixando os filhos para trás. Atenção: abandonam o país, não os filhos, que esses não se podem abandonar. Pelo menos, é isso que Mihai nos quer mostrar. Na verdade, sabemos que há pais que abandonam os filhos; mas sabemos, igualmente, que esta mãe não abandonou os seus. A prova está no título, basta esperar por Agosto para que regresse. Mas se esperamos pelo regresso em Agosto, esperamos também pela nova partida no final do mês, pela repetição do ciclo anual. É essa uma das verdades inexoráveis de Waiting for August: qualquer retorno é temporário.

Daí que as crianças de Liliana sejam deixadas durante o ano ao cuidado da irmã mais velha, que só tem quinze anos. A uma espécie de parenting by proxy - quer da irmã-mãe, quer da televisão, que insiste em passar telenovelas espanholas - numa casa governada por quem ainda não tem (ou não devia ter) idade para a governar. E se, a espaços, nos podemos facilmente esquecer que Georgiana é. também ela, uma criança, cedo nos recordamos que sofre dos mesmos dramas que os nossos teens, das mesmas angústias próprias da idade. E é essa a outra verdade inexorável de Waiting for August, a de que, para os irmãos terem infância, Georgiana teve de hipotecar a sua.

Assim, e de verdade em verdade, de verdade para verdade, a obra de Mihai consegue o que poucas outras conseguem: um retrato da vida de uma família através de uma intromissão em grande parte invisível (e alguém reparava, à saída do filme, que quando as pessoas quebravam a tela não era para olhar para as câmaras, era para olhar para as pessoas por detrás delas). O bleak transformado em algo belo, como só o Cinema é capaz de transformar.


JOÃO BÉNARD DA COSTA - OUTROS AMARÃO AS COISAS COISAS QUE EU AMEI, de Manuel Mozos (Portugal, 2014):

Sala composta, compostíssma, para JOÃO BÉNARD DA COSTA - OUTROS AMARÃO AS COISAS QUE EU AMEI. Tão cheia, que me vi no meio de um cortejo fúnebre (ou assim julgava, antes da sessão) escadaria abaixo. Por dois motivos - que, afinal, seriam só um -: 1) a oportunidade rara de "apanhar" um Mozos em sala; e 2) a vontade de (re)ver Bénard da Costa, uma espécie de paizinho (e "paizinho", aqui, no sentido mais carinhoso possível) cinéfilo.

Outros amarão as Coisas que eu amei é um filme imenso, tão imenso que quase não cabe na tela. Tão imenso, que precisa de se socorrer de outros filmes, igualmente imensos, para que possa existir. Do mais belo Lubitsch, do mais completo Ray, do mais musical Minnelli, do mais poético Dreyer, dos excertos de Oliveira e Ruiz. E através dessas Coisas todas, que, no fundo, são apenas uma, o Amor de Bénard da Costa - e de Mozos - contagia quem o ouve. E infecta o íntimo, como um vírus que se alastra, sem cura nem salvação. Porque o Cinema só existe em quem o sente, em quem sobre ele fala, em quem sobre ele escreve.

E Ray, Lubitsch e Mankiewicz, mesmo depois de levados pelo Tempo, pelo «homem da ampulheta». continuam, entre nós, tão presentes como quando, em carne, o estavam. E, como nessa luminosa cena de Gigi, é a memória que os faz, e que faz deles deuses, que os perpetua além-túmulo. A letra mata, o espírito vivifica - e não será o celulóide, também, ele letra, e o espectador espírito?

Do milagre da memória, de que já falava Luís Costa no seu Fontelonga, poucos saberão tanto como Bénard da Costa, o homem que viu Johnny Guitar mais de sessenta vezes (sessenta e oito antes do final dos anos oitenta, se a memória não me falha), mas que sobre ele só conseguia falar «delirando». E é, outrossim, sobre a memória que outros dos filmes seleccionados, The Ghost and Mrs. Muir, versa, nesse solilóquio do Capitão Daniel Gregg reproduzido, que, como diria Régio, «é um vendaval que se soltou,/ É uma onda que se alevantou,/ É um átomo a mais que se animou...». Aliás. é sobre a memória, sobre o acto de rememorar, que Mozos constrói o seu Bénard da Costa, a sua carta de amor ao Homem que tudo nos deu sem nunca nos exigir nada em troca, nada senão o desejo de viver com ele o que ele vivia tão profundamente.

Acredite, amigo leitor, que tentei evitar ao máximo o patetismo do que aqui derramo. Tentei, mas tentei em vão. Porque o Cinema não vive só, nem sobretudo, do objectivo, do que está lá e do que deixa de estar, mas também do subjectivo, do que dele levamos quando abandonamos a penumbra e os fantasmas. E se arrisco o absolutismo de afirmar Outros amarão as Coisas que eu amei - e nenhum outro filme foi capaz de me fazer deixar a sala tão contente, tão desfeito, tão abalado nas minhas convicções, tão sem saber o que fazer - como sendo o mais belo filme de sempre, faço-o porque acredito que o seu objecto é, por sua vez, também ele o mais belo. Bénard da Costa, João, quis que outros amassem o que ele amou. Hoje, digo com toda a certeza que amamos. Talvez não o amemos tão intensamente, com tanta disponibilidade. Mas amamos. E isso já ninguém nos tira. Nem o Tempo...

«Quem não percebe, não percebe também a dimensão do que não percebe.»

[JOÃO BÉNARD DA COSTA - OUTROS AMARÃO AS COISAS QUE EU AMEI repete esta quinta-feira, 11 de Dezembro, no Pequeno Auditório do Rivoli, às 18h00.]

António Tavares de Figueiredo

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Filme do Mês #7

Todos os meses, o filme com estreia - comercial - nacional que melhor pontuação recebeu da redacção do Matinée Portuense, e o que por cá se escreveu sobre ele.

Novembro, 2014

Depois do longo intervalo, voltamos a escolher como Filme do Mês uma obra de Richard Linklater. Desta feita, é BOYHOOD a merecer a distinção. A crítica - e as nove câmaras vermelhas - pertence a Tiago Rocha.
 

«Richard Linklater ousa deliciar-nos com 12 anos de vivências sem flashbacks, grandes adornos ou efeitos especiais. Uma década (e mais uns trocos) do progresso das personagens, não só enquanto elementos figurativos extrapolados da criatividade de uma mente brilhante (que é a de Linklater), mas também das personagens enquanto actores, representações reais do mundo objectivo.» (TR)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Trailer de "Star Wars: The Force Awakens"

Star Wars regressa em 2015 e finalmente temos as primeiras imagens do que nos espera. Sendo um marco na infância de muitos de nós, as expectativas estão em alta e o pequeno vislumbre da nova Millenium Falcon só melhora toda a situação. STAR WARS: THE FORCE AWAKENS, realizado por J.J. Abrams, será uma das grandes estreias do próximo ano e este primeiro teaser parece promissor.

domingo, 30 de novembro de 2014

Sunday Stills #54: "Before Sunrise"


Na semana de estreia em sala de BOYHOOD, o épico de doze anos de Richard Linklater, recordamos BEFORE SUNRISE, um outro início. E confirmamos a nossa suspeita de que Linklater será mesmo um dos grandes autores contemporâneos (conforme já o tínhamos defendido, aqui).

Boyhood (2014)

Depois de ver BOYHOOD sinto-me completamente esmagado perante a brutalidade com que a pelicula encara  a realidade. Não se trata apenas de mais um coming-of-age. O que vemos são dinâmicas de um quotidiano que, de tão mundano, tão comum, tão vulgar e ao mesmo tempo tão único, se torna, ele mesmo, um buraco negro capaz de sugar o espectador para o próprio ambiente fictício que cria  no invólucro da existência (também  ele, diga-se de passagem, incrivelmente rico, natural e verdadeiro).


O filme é simplesmente avassalador. Avassalador pela  maneira como retrata a vida, e avassalador pela forma como o faz.

Não há intermitências no plano temporal de Boyhood- porque também não as há na vida. O tempo avança implacavel e impiedosamente traçando, em duas horas e meia, o desenvolvimento de  Mason (Ellar Coltrane) de um modo longitudinal. 

Contando com actuações absolutamente excepcionais, a narrativa, linear e coesa, expressa harmonia na proporção de drama, comédia, sentimentos e emoções. O argumento é fluído, não existe um sem-sentido nas falas dos indivíduos que não se encaixe perfeitamente naquilo que é a norma em qualquer discurso. Os planos, simplistas e centralizados, são desprovidos de uma necessidade de grandeza, limitando-se a projectar acontecimentos no ponto de vista de alguém que os esteja a ver de fora- e no entanto, é tão fácil para nós (esse alguém que está de fora) identificar-mo-nos com as personagens. Quer sejamos uma criança de 7 anos que se despede com nostálgica tristeza da cidade onde vive, quer sejamos um miúdo de 13 anos que se tenta inserir numa nova escola. Um pai ausente, que procura restabelecer laços afectivos com os filhos, ou uma mãe que tenta desesperadamente conciliar um trabalho precário com a educação dos mesmos. Não importa quem. Não interessam as circunstâncias. Boyhood é a história de uma vida: a minha, a sua, ou a do seu vizinho. 

Richard Linklater ousa deliciar-nos com 12 anos de vivências sem flashbacks, grandes adornos ou efeitos especiais. Uma década (e mais uns trocos) do progresso das personagens, não só enquanto elementos figurativos extrapolados da criatividade de uma mente brilhante (que é a de Linklater), mas também das personagens enquanto actores, representações reais do mundo objectivo. 

Estamos, portanto, na presença de uma obra de arte sem igual, uma experiência cinematográfica como nunca antes vista e que, seguramente, não o será outra vez tão cedo.


Título Original: Boyhood (EUA, 2014)
Realizador: Richard Linklater
Argumento: Richard Linklater
Intérpretes: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke, Lorelei Linklater, Marco Perella
Fotografia: Lee Daniel, Shane F. Kelly
Género: Drama
Duração: 165 minutos



sexta-feira, 28 de novembro de 2014

300: Rise of an Empire (2014)

Do realizador Noam Murro e com a participação de Zack Snyder, nasce a sequela do filme 300 na tentativa de recriar o sucesso entre o público. 300: RISE OF AN EMPIRE retrata a continuação da guerra entre a Grécia e a Persa mas desta feita, pela prespecitva ateniense.


Themistokles (Sullivan Stapleton) é um general ateniense encarregado de unir a Grécia e preparar a defesa contra a ofensiva militar persa liderada por Xerxes (Rodrigo Santoro). A acção vai se desenrolar em paralelo com a do primeiro filme mas desta vez, no mar onde a poderosa frota persa controlada por Artemisia (Eva Green) dominava. Mais uma vez, os gregos são colocados numa situação de uma colossal desvantagem numérica que Themistokles tem que lidar, usando astucia e estratégias militares para impedir o avanço persa.

O filme anterior era apenas sobre guerreiros bem treinados em combate diário com inovadoras cenas de acção que impressionam o espectador e não deixava de transmitir um certo heroísmo pelo sacrifício destes trezentos heróis. Este filme no entanto, trata-se apenas de sangue em 3D. Do início ao fim somos banhados no constante sangue que jorra dos ferimentos dos persas enquanto são trinchados em slow motion aleatório e planos que mais parecem retirados de um jogo gore, onde as personagens deverão decerto ser descendentes de deuses pois de outra forma não sei como seriam capazes de sobreviver certos feitos definitivamente inumanos.

Não sei se a ideia era transmitir o misticismo inerente a mitologia grega mas certos pontos do enredo podem ser consideradas simplesmente treta. A tentativa de ilustrar a transformação de Xerxes em Rei-Deus que tão cedo me deixou céptico em relação ao resto do filme e a estranha cena de sexo são dois bons exemplos disso.

No entanto, a inferioridade de 300: O Início de um Império em comparação com o filme de 2004 não o impediu de receber boas críticas, certamente influenciadas pelo papel de Eva Green como Artemisa, capitã da frota persa que viveu a infância torturada e abusada por captores gregos, sendo afectada por um ódio profundo e uma sede de vingança pela Grécia. A grande actuação da viciosa e implacável Artemisa conseguia sempre prender a atenção, e constitui um ponto positivo do filme.

Para os que apreciaram o filme antecessor, deverão ser capazes de ver este filme com algum interesse. Se não são fãs do sague e violência do primeiro, será um filme a evitar pois é apenas um aumento no gore a juntar a maus efeitos especiais e piores slow motions.


Título Original: 300: Rise of an Empire (EUA, 2014)
Realizador: Noam Murro
Argumento: Zack Snyder, Kurt Johnstad
Intérpretes: Sullivan Stapleton, Eva Green, Lena Headey, Hans Matheson, Callan Mulvey, David Wenham, Rodrigo Santoro
Música: Junkie XL
Fotografia: Simon Duggan
Género: Acção, Fantasia
Duração: 102 minutos


quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Virados do Avesso (2014)

Pelo trailer - dos spots publicitários mais bizarros do Cinema Português recente -, e conhecendo o background de Edgar Pêra, já se adivinhava que VIRADOS DO AVESSO seria das duas uma: ou um filme tão experimental, mas tão experimental, que ninguém perceberia que o era, ou um objecto tão vulgar nos seus modos que, paradoxalmente, seria entendido como absolutamente experimental. Sem o benefício da digestão (até porque não creio que o seu principal problema seja o de ser particularmente indigesto, mas já lá iremos), não me consigo decidir em qual das hipóteses se encaixa melhor.


Uma coisa, contudo, é certa: Virados do Avesso será dos maiores manguitos lançados ao público português, porventura maior até do que o João César Monteiro lançou com Branca de Neve (mas menos satisfatório). Vejamos, correndo o risco de arrastar, em massa, espectadores às salas - e não é de todo descabido julga-lo capaz de rivalizar com os números de Balas & Bolinhos, Morangos com Açúcar - O Filme ou 7 Pecados Rurais -, será dos primeiros casos, se não mesmo o primeiro, em que um autor tão vincado é capaz de o fazer entre-fronteiras. E a malta que não conhece Pêra (a grande maioria, arrisco-me a avançar) nem desconfiará que está perante um dos grandes realizadores experimentais da actualidade.

A questão aqui, portanto, não se prenderá tanto com a inteligência, ou a falta dela, da premissa como com a tentativa de compreender o motivo que levou Pêra a descer tão baixo. Será que a velha dicotomia do Cinema Português - comercial versus de autor - não teria sido, ainda assim, uma vez mais reacendida caso o filme em questão não fosse tão mau (e, pior, assumidamente mau)? Porque Pêra, ao contrário do seu protagonista, não se esqueceu do experimentalismo da noite para o dia. A prova está na montagem, presa entre o slow e o fast motion, das mais excêntricas na filmografia nacional. E se se ri ao apresentar um produto tão abaixo da sua bitola, já nem o faz genericamente (como se diz, às tantas, no filme), mas claramente às custas de quem pagou para o ver.

O problema está na vacuidade extrema (dos estereótipos ocos ao humor brejeiro) a que Pêra se entrega para mostrar - ou denunciar, conforme se tenha maior ou menor vontade em compreender a sua intenção - o dilema do autor que se prostitui ao comercial. Na verborreia, quer literal, quer visual, que tudo domina, enche planos com Diogo Morgado - o Jesus tornado pecador e convertido em straight -, abusa da artificialidade das luzes e da trama, e utiliza um sem número de gags que, de outra maneira, não se lembraria nunca de utilizar. Mais, tenta enfiar em cada cena um novo gimmick de câmara, a ver se alguém dá por isso. É nesse tasteless - e haverá tasteless maior neste cantinho à beira-mar plantado do que colocar Anselmo Ralph a cantar as suas músicas em frente a uma câmara? -, cópia inferior ao reproduzido por Harmony Korine em Spring Breakers, até pelo ridículo a que se sujeita, que Virados do Avesso perde o fio à meada e se deixa afundar.

Pêra, à semelhança de Nick Cave, deixou de ser, a certa altura, um ser humano. Encarnou a personagem de Homem-Kâmara, filmou-se no quotidiano, filmou os outros, meteu-se no meio de Godard e Greenaway, brincou com o 3D e realizou um filme tão estranho - O Barão - que ninguém na RTP 2 reparou que estavam a exibir uma esverdeada versão inacabada antes de surgirem as queixas. Mas ninguém gosta de ver a sua inteligência insultada, mesmo que quem a insulte o faça de forma (aparentemente) inteligente. E, após ver Virados do Avesso, não deixo de me sentir assim. Pêra dançou no varão do Cinema comercial. Esperemos é que não repita a gracinha tão cedo.


Título Original: Virados do Avesso (Portugal, 2014)
Realizador: Edgar Pêra
Argumento: Henrique Cardoso Dias, Roberto Pereira, Frederico Pombares
Intérpretes: Diogo Morgado, Jorge Corrula, Marina Albuquerque, Nuno Melo, Philippe Leroux, Miguel Partidário
Música: José Joaquim de Castro
Fotografia: Miguel Sales Lopes
Género: Comédia
Duração: 96 minutos


Jessabelle (2014)

JESSABELLE, de Kevin Greutert, nada surpreende, apoiando-se num argumento disparatado, actuações medíocres e uma realização preguiçosa, é apenas mais uma fraca tentativa a um filme de terror. Parece haver uma estranha obsessão por planos frontais de Sarah Snook, uma inquietante busca artística, e um conjunto desnecessário de cenas que existem para que o filme não tenha apenas 50 minutos.


Tudo começa relativamente simples, Jessabelle (Sarah Snook), incapacitada após um acidente de viação, vê-se obrigada a voltar para casa do pai, para que este a ajude durante a sua recuperação. O que Jessabelle não sabe será a sua ruína, quando uma estranha presença a assombra e velhas cassetes de video da sua mãe predizem um destino terrível. 

Inconsistente do inicio ao fim, esta fantasia de terror melodramático nunca assusta nem emociona. Os fracos desempenhos por parte dos actores apenas pioram as personagens que já pouca exposição possuem e a protagonista exausta-nos com a sua sarcástica omnipresença. Sarah Snook no papel de Jessabelle é desinteressante  e consistentemente nauseante, com uma expressão estarrecida e de estupefacção constante, num esforço exaustivo de transmitir inocência sem que alguma vez pareça natural. Acompanhada por Mark Webber, no papel de Preston, formam um dos casais mais inábil e incómodos dos últimos tempos-

O pior aspecto de tudo isto será o trabalho de Kevin Greutert, indeciso nos seus modelos, parece estar constantemente a alterar de estilo, mais preocupado com uma imagem limpa e colorida do que propriamente com a coesão espacial-temporal da acção. Juntamente com o incrivelmente aborrecido e pouco inspirado argumento de Robert Ben Garant, tornam Jessabelle num terror desinteressante com uma fraca execução em todos os aspectos.


Título Original: Jessabelle (EUA, 2014)
Realizador: Kevin Greutert
Argumento: Robert Ben Garant
Intérpretes: Sarah Snook, Mark Webber, Joelle Carter, David Andrews, Chris Ellis, Ana de la Reguera
Música: Anton Sanko
Fotografia: Michael Fimognari
Género: Terror, Thriller
Duração: 90 minutos


segunda-feira, 24 de novembro de 2014

As letras de Johnny Worricker


Os títulos de PAGE EIGHT, TURKS & CAICOS e SALTING THE BATTLEFIELD, todos de David Hare.

Uma breve passagem pela trilogia de Johnny Worricker, dirigida por David Hare - nomeado por duas vezes ao Oscar de Melhor Argumento Adaptado - permite-nos algumas conclusões:

I. A espionagem, mesmo quando azeda, é um negócio para gente educada.

II. Worricker, o mais jazzístico dos espiões, é uma personagem extraordinariamente cool, com Bill Nighy a espalhar um charme lacónico pelos três capítulos (um pouco à semelhança do que Gary Oldman faz enquanto George Smiley em Tinker Tailor Soldier Spy, de Tomas Alfredson, o grande filme de espionagem da última década).
 
III. Continuam a existir, e cada vez mais em maior quantidade, telefilmes muito interessantes.

domingo, 23 de novembro de 2014

sábado, 22 de novembro de 2014

20,000 Days on Earth (2014)

Durante muito tempo quis acreditar que o Nick Cave-artista não poderia ser o mesmo que o Nick Cave-pessoa. Enfim, que haveria alguma diferença, mesmo que eu não a soubesse ou pudesse identificar, entre os dois. Mantive esse crença desde o momento em que o meu interesse por Nick passou simplesmente das suas músicas para a figura em si (e quem o conhece perceberá perfeitamente o porquê). Depois de 20,000 DAYS ON EARTH tenho já as minhas dúvidas.


[Para contextualizar, devo escrever que, das muitas bandas que fui ouvindo durante a adolescência, Nick Cave & The Bad Seeds foi das únicas que se aguentou persistentemente nos meus leitores de música até aos dias de hoje. Não que esteja tão longe dos meus teens quanto isso, mas acho que essa preferência demonstra bem a minha admiração pela sua obra. Não se espere, portanto, muita isenção da minha parte neste caso.]

Retomando o parágrafo inicial, tenho agora dúvidas sobre a existência de uma fronteira entre as duas formas de Nick. Dúvidas sérias, devo acrescentar. Iain Forsyth e Jane Pollard - que estão já habituadíssimos a trabalhar o material de Nick - abalaram a minha fé profunda de que aquela personagem só existira, só poderia existir, numa dimensão ficcionada. Malditos sejam, por me fazerem desconfiar dos meus dogmas! Mostraram-me que, afinal, o Nick das baladas assassinas, essa criatura verdadeiramente sobrenatural, pode ser real. Não estou a dizer que seja, mas, sendo-o, a barreira que separa o performer do everyday man é vulnerável a transmissões osmóticas em ambos os sentidos. É Nick quem o admite quando fala da sua relação com a mulher: ele canibaliza-a nas letras que escreve, perpetuando, quase prostituindo, momentos íntimos em objectos para o público. Faz parte do pacto entre eles. Será uma prova de amor?

E, caso se trate de uma prova de amor, será de Amor a quê(m), à sua Arte ou à mulher? Novamente, não consigo afirmar com absoluta certeza. Nick ama a mulher, tudo bem. Mas não amará também a audiência que lhe permite a transformação (ou a sua ilusão) de que tanto fala?

Nada é claro no Universo Caveniano. Nick não deixa que seja. No seu Mundo psicanalítico, visceral, brutalmente sexualizado, não há lugar para maniqueísmos, apenas para ambiguidades. Nick não é moralista; essa tarefa reserva aos homens. Não, ele, que aspira à condição de Deus dentro da sua criação, contenta-se com a função de observador e catalisador das acções das suas projecções. Às tantas, surge uma cena de um concerto dos The Bad Seeds: Nick aproxima-se de uma jovem na primeira fila, coloca a mão dela sobre o seu coração e pergunta-lhe se o consegue sentir a bater. Ela diz quem sim, Ele diz que não. Como poderia ela, uma mera mortal, ousar sentir o seu Deus? Simples: não pode. Resta-lhe a catarse oferecida por aquele Deus diabólico, que aparecerá, invariavelmente,  momentos mais tarde ao som de Stagger Lee, com Warren Ellis a tocar violino que nem um desalmado, expiação possível para todos os males deste Mundo e do Outro. A pobre moça pecou (e tanto sabe que pecou que, mal Nick se desprende, baixa logo a cabeça em sinal de contrição), mas Nick é um Deus generoso que lhe perdoa o deslize. Daquele exorcismo colectivo a que preside todos saem com a justa absolvição que procuram.

20,000 Days on Earth é, dessa maneira, um filme enorme. Enorme por se centrar numa personagem já de si enorme, e enorme por ser capaz de encaixar em pouco mais de hora e meia tantas e tantas facetas diferentes - memória e presente, fantasmas e pessoas, (des)construção lírica e processo criativo, drama e documentário - de um dos artistas mais versáteis em actividade. 20 000 dias na Terra - qualquer coisa como 55 anos, menos uns trocos - é muita coisa. E Nick, que soube envelhecer, principalmente por não ter envelhecido, viveu-os a todos. Quem venham outros 20 000, e outros, e outros... From H[im] To Eternity.

«At the end of the 20th century, I ceased to be a human being.»


Título Original: 20,000 Days on Earth (Reino Unido, 2014)
Realizador: Iain Forsyth, Jane Pollard
Argumento: Nick Cave, Iain Forsyth, Jane Pollard
Intérpretes: Nick Cave, Warren Ellis, Ray Winstone, Blixa Bargeld, Kylie Minogue, Susie Bick
Música: Nick Cave, Warren Ellis
Fotografia: Erik Wilson
Género: Documentário, Drama, Música
Duração: 97 minutos


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Noah (2014)

NOAH, de Darren Aronofsky, é um drama adaptado da narrativa da Bíblia referente à Arca de Noé mas com algumas discrepâncias com a introdução de uma época feudal, incluindo até guerras estilo fantasia.


A base da história não é muito diferente da que estamos habituados a ouvir. Noah, (Russel Crowe) descendente de Adão, tenta sobreviver rodeado de homens marcados pela corrupção e pecado que ameaçam a sua vida pacífica. Através dos seus sonhos, prevê a iminente destruição da humanidade pelo Criador, através de um dilúvio capaz de limpar o mal e castigar os pecadores. De forma a poupar os inocentes, Noah é encarregado de construir uma arca capaz de suportar e proteger os animais durante a chuva, para que eles se reproduzam no novo mundo.

Na tentativa de expressar a história por imagens, o esforço de revelar respostas a problemas éticos poderiam impressionar se o desenrolar da acção não fosse tão lento e enfadonho, de quase adormecer, perguntando quanto tempo falta para acabar um filme de duas horas que mais parecem quatro. Podia ter alguém a ler-me a história bíblica, que não ficaria mais aborrecido.

Tenho pena em notar que Russel Crowe continua a baixar os seus parâmetros em relação à sua participação em filmes depois de protagonizações tão marcantes, com este desempenho do elenco, em geral, presos a personagens com pouca evolução e formas de pensar fechadas e contraditórias.

Quanto aos efeitos especiais, há uma combinação do Criacionismo com Darwinismo para explicar o início da Terra e o criador revela a sua existência através de truques de magia, anjos caídos muito pouco realistas e nada impressionantes. Verdade seja dita, esses truques milagrosos conseguem ser tão aborrecidas como a acção.

Para quem não seja assim tão fácil de impressionar, este filme é  mais uma dor de cabeça longa e dolorosa, e cerca de duas horas desperdiçadas.


Título Original: Noah (EUA, 2014)
Realizador: Darren Aronofsky
Argumento: Darren Aronofsky, Ari Handel
Intérpretes: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Anthony Hopkins, Emma Watson, Logan Lerman
Música: Clint Mansell
Fotografia: Matthew Libatique
Género: Acção, Aventura, Drama
Duração: 138 minutos


terça-feira, 18 de novembro de 2014

Maleficent (2014)

Cruel, impiedosa e vingativa. Quem se recorda do açucarado clássico da Disney The Sleeping Beauty, decerto se lembra também da torpe vilã, Malévola a fada malvada. Essa, que tão somente por lhe faltar um simples convite à celebração do nascimento de uma princesa, era capaz de semear o caos em todo um reino. Um modelo para os vilões que a sucederam, que acaba por se tornar o alicerce para a dualidade existencial entre o bem e o mal já vislumbrada por Tchaikovsky no seu segundo ballet.


Em 1959 chega-nos, pois, o colorido e encantador (mas, por vezes, assustador) desenho animado que se tornou um marco para a animação cinematográfica ao ser o mais dispendioso cartoon produzido pela Walt Disney Pictures até à data.

Cinco décadas depois estreia nas salas de cinema a mais recente adaptação em live-action desse mesmo clássico, MALEFICENT. Um verdadeiro passeio alegórico pela catarse nostálgica que era a Bela Adormecida.

Incluindo a participação de Angelina Jolie (cuja prestação é digna de louvor)  no papel de protagonista, o filme conta a história que todos conhecemos ao revés adoptando uma inovadora perspectiva, a de Malévola. Lamentavelmente, aquilo que podia ter sido um passeio agradável por The Moors e redondezas converteu-se numa prova de 400 com barreiras, a qual em cada obstáculo parecia quebrar mais e mais a essência do conto de fadas.

Em primeiro lugar, sente-se o tempo marcadamente acelerado em Maleficent. Quase como se houvesse alguma pressa por parte de Robert Stromberg em projectar no pano a mixórdia de ideias que lhe passavam pela cabeça. Segundo, a metragem (a meu ver) sofre de incoerência em vários instantes, por exemplo, levando a cabo o âmago da questão: a dualidade bem vs mal/ amor vs ganância. Por que motivo a fada malvada, após ter sido atraiçoada pelo humano que amava (e já depois de ter lançado a maldição sobre Aurora), continuou a olhar pela princesa, inclusive salvando-a em algumas situações? Assuntos filosóficos à parte, note-se a inutilidade da construção da "barreira" de metal, a qual tanto trabalho deu àqueles pobres plebeus encarregues pelo rei, que se empenharam dia e noite, incessantemente! Tudo isto para chegar lá a nossa antagonista/protagonista e desviar-se com incrível facilidade dos espinhos de metal.

Ponto número três, as batalhas anti-climáticas...

Com o arsenal tecnológico ao dispor das grandes companhias de produção dos dias que correm, não creio que fosse pedir muito temperarem as poucas cenas de acção com uma pitada de épico. Mesmo num clássico da Disney. Infelizmente não é o caso, pelo menos não em Maleficent. Atrevo-me, mesmo, a dizer que o original de 1959 consegue reproduzir a batalha final de forma mais sublime.

Sem embargo, o filme não é imerecido de alguns feitos. Ele é visualmente deslumbrante, evocando mesmo certos elementos característicos de um James Cameron. Joga com as personagens do conto, de forma a inverter os papeis de herói e de vilão, procurando sempre introduzir o seu quê moralista no final que não a díade princepe/princesa. E acima de tudo, ele tenta. Tenta ser diferente da fórmula Disney que durante tanto tempo enfeitiçou o grande ecrã dando início, possivelmente, a uma nova fórmula mágica.

Perplexo perante esta nova adaptação daquele que considero ser o mais icónico dos títulos da era das princesas Disney, faço das palavras de Paulo Coelho as minhas: «Em cada instante das nossas vidas temos um pé nos contos de fadas e outro no abismo». Neste sentido, Maleficent aparenta estar na corda bamba, mas consegue equilibrar-se  nos limites do plausível.


Título Original: Maleficent (EUA, 2014)
Realizador: Robert Stromberg
Argumento: Linda Woolverton (baseado no filme Sleeping Beauty)
Intérpretes: Angelina JolieElle FanningSharlto Copley 
Música: James Newton Howard
Fotografia: Dean Semler
Género: Acção, Fantasia
Duração: 97 minutos


segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Persepolis (2007)

De Marjane Satrapi só conheço, infelizmente, os filmes dirigidos a meias com Vincent Paronnaud. Não posso, pois, compará-los nem com as novelas gráficas que lhes serviram de base, nem com os seus trabalhos posteriores, a solo. Erro crasso, lacuna a suprir urgentemente, eu sei, amigo leitor. Posso, contudo, comparar PERSEPOLIS a Poulet aux prunes, a segunda obra da dupla, e a partir daí (tentar) tirar as minhas conclusões.


Escreva-se que, à primeira vista, a principal diferença entre os dois filmes reside na utilização da cor. A monocromia de Persepolis, com o negro muito acentuado, contrasta com a explosão colorida de Poulet aux prunes. Mais, o negro em Persepolis, de tão cerrado, parece oprimir frequentemente as suas personagens - recorde-se, a propósito, o inspirado plano que fecha o rosto de Marjane nos véus da polícia religiosa; o negro elimina e sobrepõe-se a (quase) tudo o resto. Em Poulet aux prunes não existem esses constrangimentos: é tudo mais aberto, mais feliz, mais despreocupado.

Outra das questões relevantes prende-se com o onirismo e a realidade presentes em ambos os trabalhos, e com o seu peso relativo. Persepolis e Poulet aux prunes constroem-se em torno das memórias familiares de Satrapi. Mas enquanto que no segundo essas recordações se erguem entre sonhos e fantasias, atingindo, a espaços, contornos Jeunetianos, no primeiro elas fundam-se, sobretudo, na realidade, mesmo quando, a certa altura, somos encarados por Deus (e Marx). Persepolis é, dessa maneira, um objecto muito mais denso do que o seu sucessor, talvez pela sua história ser, também ela, mais urgente e próxima à autora.

Mas é exactamente aí que o desconhecimento da obra individual quer de Satrapi, quer de Paronnaud, se faz sentir com maior intensidade: é-me impossível saber ao certo a contribuição de cada um deles para a equação final. Será que a presença de Satrapi se prende mais ao raconto, e a de Paronnaud ao lado estético? Será que Paronnaud limitou-se a ser a porta de entrada de Satrapi numa indústria desconhecida?

Seja como for - e, em última análise, essas interrogações são de somenos importância para o que aqui pretendemos -, Persepolis não tem medo de se assumir como a obra imensa que é. Marjane acaba uma estrangeira tanto no seu Irão como no Ocidente. Ali, pela liberdade que lhe roubam, asfixiando-a; aqui, por não se identificar com um estilo de vida para o qual não foi educada. Resistindo ao niilismo, resta-lhe apenas permanecer fiel à sua identidade cultural e às promessas feitas.

Será Persepolis o filme culturalmente mais relevante da última década? Ao misturar Arte e entretenimento, História e estória, Política e Religião, apelando, simultaneamente, a audiências ocidentais e iranianas, merece, pelo menos, alguma consideração nesse sentido. Por os regimes ainda se sucederem e as guerras continuarem a existir, urge (re)descobrir este monumento sociopolítico. E ouvir muito atentamente aquilo que Marjane tem para nos dizer.

[Persepolis é hoje exibido na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, às 21h00, integrado no QUÓRUM: Ciclo Cinema & Política. Oportunidade de ouro para ver, ou rever, uma das obras mais actuais do Cinema contemporâneo.]


Título Original: Persepolis (EUA/França, 2007)
Realizador: Marjane Satrapi, Vincent Paronnaud
Argumento: Marjane Satrapi, Vincent Paronnaud
Intérpretes: Chiara Mastroianni, Danielle Darrieux, Catherine Deneuve, Simon Abkarian, Gabrielle Lopes Benites 
Música: Olivier Bernet
Género: Animação, Biografia, Drama
Duração: 96 minutos



domingo, 16 de novembro de 2014

Sunday Stills #52: "The Proposition"


Na semana em que um filme sobre Nick Cave chega às salas nacionais, o fotograma da semana pertence a uma das colaborações do músico/argumentista com John Hillcoat, THE PROPOSITION.

sábado, 15 de novembro de 2014

Dawn of the Planet of the Apes (2014)

DAWN OF THE PLANET OF THE APES, de Matt Reeves, sobressai pela sua clara superioridade em relação ao seu predecessor. Uma melhoria em quase todos os aspectos, fundamentalmente divertido e visualmente cativante, não desaponta nem impressiona.


Dez anos após a fuga de Caesar (Andy Serkis) e os restantes macacos em cativeiro, um vírus arrasou grande parte da população humana, os que restam vivem em comunidades segregadas. Os macacos, por sua vez, prosperam e vivem numa pequena cidade primitiva na floresta. Quando a necessidade de energia obriga os humanos a invadirem, inconscientemente, o território dos macacos, estes sentem-se ameaçados e sem razão nenhuma para confiar nos humanos. Num ambiente de grande tensão, onde o mínimo erro poderá desencadear uma guerra, tudo pode correr mal para qualquer um dos lados.

Dawn é simplesmente incrível, tal como Rise of the Planet of the Apes veio surpreender as massas com um filme que, literalmente, salvou um franchise morto, esta sequela promete-nos melhor para o que o futuro nos reserva, esperançosamente. Com desempenhos dignos por parte do elenco, visuais e efeitos especiais de cortar a respiração e o que considero ser o melhor trabalho de Reeves até à data. Infelizmente, o argumento não é o melhor. Tudo se perde, pouco chega realmente a ser coerente, e os problemas de continuidade, serão sempre, para mim, uma falha grave.

Definitivamente, um dos grandes filmes do ano. Apenas resta esperar que as futuras sequelas melhorem gradualmente, resolvam os problemas de argumento e um possível aumento de elenco... Talvez seja melhor não exagerar nas expectativas.


Título Original: Dawn of the Planet of the Apes (EUA, 2014)
Realizador: Matt Reeves
Argumento: Mark Bomback, Rick Jaffa, Amanda Silver
Intérpretes: Andy Serkis, Jason Clarke, Gary Oldman, Keri Russell, Toby Kebbell, Kodi Smit-McPhee, Terry Notary
Música: Michael Giacchino
Fotografia: Michael Seresin
Género: Acção, Ficção-Científica
Duração: 130 minutos