Durante muito tempo quis acreditar que o Nick Cave-artista não poderia ser o mesmo que o Nick Cave-pessoa. Enfim, que haveria alguma diferença, mesmo que eu não a soubesse ou pudesse identificar, entre os dois. Mantive esse crença desde o momento em que o meu interesse por Nick passou simplesmente das suas músicas para a figura em si (e quem o conhece perceberá perfeitamente o porquê). Depois de 20,000 DAYS ON EARTH tenho já as minhas dúvidas.
[Para contextualizar, devo escrever que, das muitas bandas que fui ouvindo durante a adolescência, Nick Cave & The Bad Seeds foi das únicas que se aguentou persistentemente nos meus leitores de música até aos dias de hoje. Não que esteja tão longe dos meus teens quanto isso, mas acho que essa preferência demonstra bem a minha admiração pela sua obra. Não se espere, portanto, muita isenção da minha parte neste caso.]
Retomando o parágrafo inicial, tenho agora dúvidas sobre a existência de uma fronteira entre as duas formas de Nick. Dúvidas sérias, devo acrescentar. Iain Forsyth e Jane Pollard - que estão já habituadíssimos a trabalhar o material de Nick - abalaram a minha fé profunda de que aquela personagem só existira, só poderia existir, numa dimensão ficcionada. Malditos sejam, por me fazerem desconfiar dos meus dogmas! Mostraram-me que, afinal, o Nick das baladas assassinas, essa criatura verdadeiramente sobrenatural, pode ser real. Não estou a dizer que seja, mas, sendo-o, a barreira que separa o performer do everyday man é vulnerável a transmissões osmóticas em ambos os sentidos. É Nick quem o admite quando fala da sua relação com a mulher: ele canibaliza-a nas letras que escreve, perpetuando, quase prostituindo, momentos íntimos em objectos para o público. Faz parte do pacto entre eles. Será uma prova de amor?
E, caso se trate de uma prova de amor, será de Amor a quê(m), à sua Arte ou à mulher? Novamente, não consigo afirmar com absoluta certeza. Nick ama a mulher, tudo bem. Mas não amará também a audiência que lhe permite a transformação (ou a sua ilusão) de que tanto fala?
Nada é claro no Universo Caveniano. Nick não deixa que seja. No seu Mundo psicanalítico, visceral, brutalmente sexualizado, não há lugar para maniqueísmos, apenas para ambiguidades. Nick não é moralista; essa tarefa reserva aos homens. Não, ele, que aspira à condição de Deus dentro da sua criação, contenta-se com a função de observador e catalisador das acções das suas projecções. Às tantas, surge uma cena de um concerto dos The Bad Seeds: Nick aproxima-se de uma jovem na primeira fila, coloca a mão dela sobre o seu coração e pergunta-lhe se o consegue sentir a bater. Ela diz quem sim, Ele diz que não. Como poderia ela, uma mera mortal, ousar sentir o seu Deus? Simples: não pode. Resta-lhe a catarse oferecida por aquele Deus diabólico, que aparecerá, invariavelmente, momentos mais tarde ao som de Stagger Lee, com Warren Ellis a tocar violino que nem um desalmado, expiação possível para todos os males deste Mundo e do Outro. A pobre moça pecou (e tanto sabe que pecou que, mal Nick se desprende, baixa logo a cabeça em sinal de contrição), mas Nick é um Deus generoso que lhe perdoa o deslize. Daquele exorcismo colectivo a que preside todos saem com a justa absolvição que procuram.
20,000 Days on Earth é, dessa maneira, um filme enorme. Enorme por se centrar numa personagem já de si enorme, e enorme por ser capaz de encaixar em pouco mais de hora e meia tantas e tantas facetas diferentes - memória e presente, fantasmas e pessoas, (des)construção lírica e processo criativo, drama e documentário - de um dos artistas mais versáteis em actividade. 20 000 dias na Terra - qualquer coisa como 55 anos, menos uns trocos - é muita coisa. E Nick, que soube envelhecer, principalmente por não ter envelhecido, viveu-os a todos. Quem venham outros 20 000, e outros, e outros... From H[im] To Eternity.
«At the end of the 20th century, I ceased to be a human being.»
Realizador: Iain Forsyth, Jane Pollard
Argumento: Nick Cave, Iain Forsyth, Jane Pollard
Intérpretes: Nick Cave, Warren Ellis, Ray Winstone, Blixa Bargeld, Kylie Minogue, Susie Bick
Música: Nick Cave, Warren Ellis
Fotografia: Erik Wilson
Género: Documentário, Drama, Música
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