A morte de Alfred Hitchcock em 1980 levou à reavaliação da sua obra. Dois anos depois Vertigo entrava pela primeira vez no top decenal da britânica Sight & Sound (em 2012 destronaria finalmente Citizen Kane). Mais à frente, nessa mesma década, PSYCHO daria origem a duas sequelas - Norman Bates irresponsavelmente solto do hospício e de volta ao negócio de família - e, ainda mais à frente, já perto do fim do milénio, a um remake shot-by-shot. 38 anos puseram-se entre Psycho, o original, e Psycho, a cópia. As diferenças não ficam por aí, nem será essa a mais significativa, mas é sempre curioso (e útil) atentar à cronologia. Nem que seja para enquadrar cada uma das obras no zeitgeist da época em que se inserem.
Porventura, para falar sobre Psycho (1960) talvez seja curioso definir o panorama do Cinema de Terror do ano em que foi lançado. Enquanto Hitchcock labutava na sua obra nos EUA, Michael Powell, outro britânico, concluía Peeping Tom no Reino Unido; do outro lado da Mancha Georges Franju, co-fundador da Cinemateca Francesa, exibia o seu Les yeux sans visage. Os três filmes revelar-se-iam influentes no género, mas, pela proximidade temática e nacionalidade dos realizadores, para este artigo só nos interessarão os dois primeiros. Hitchcock e Powell ambordavam ambos nas suas obras o voyeurismo e o cinema como veículo dessa obsessão, apostando em vilões bem-parecidos e aparentemente normais aos olhos dos outros- e aos nossos também -, até ser tarde demais. Só que enquanto Hitchcock reunia multidões em filas infinitas, desejosas de ver e sentir o fenómeno de Psycho (o poder da propaganda já nessa altura demonstrado, naquela que seria uma das campanhas publicitárias mais eficazes na história do Cinema), a Powell eram dirigidas invectivas, boicotando-lhe a fita e terminando-lhe virtualmente a carreira de realizador junto do grande público. Cinquenta anos depois, a História já se redimiu, mas à data um filme sobre um fotógrafo que matava as suas vítimas com o tripé da câmara enquanto filmava as suas reacções foi simplesmente demasiado chocante e perturbador para o público e crítica. Um dono de motel com a psique fracturada ainda passava, mas ai dele que filmasse o mal que fazia.
Algumas décadas depois, e operada a "reabilitação" de Michael Powell (da sua reputação, entenda-se), essas estórias parecem-nos normais, fruto de uma cinematografia habituada a banalizar e de uma cultura que transforma o mais empedernido dos assassinos numa rockstar. Entorpecidos pela memória do original, que ajudou a formar muitos dos cineastas actuais ligados ao Fantástico do Terror e ao Thriller, decidiu-se, desconfio que em três tempos, refazer Psycho já bem dentro da década de 90, quando o grunge e a flanela já se começavam a desfazer. Escolheu-se Gus Van Sant, cineasta com provas dadas no circuito alternativo e quotado com a aproximação dos conceitos de indie e queer ao de mainstream, para timoneiro do projecto e decide-se colorir o ecrã. Meia dúzia de nomes sonantes, a mesma música de Bernard Herrmann (adaptada) e um grafismo nos créditos iniciais a puxar para o original, e está feito. Mais, recriam-se rigorosamente quase todos os planos filmados quarenta anos antes, alterando alguns (o establishing shot inicial parte de uma ideia de Hitchcock para o original, impossível de concretizar na época) e cortando outros. As falhas no produto final fizeram-se notar. O casting foi terrível - Anne Heche e Vince Vaughn ficam a dever muito a Janet Leigh e Anthony Perkins - a cor "manchou" a imagem e acentuou defeitos, a tensão não saiu bem (a própria noção de a reproduzir parece estranha) e a realização, em teoria igual, ficou vários furos abaixo da do Mestre. Curiosamente, quem o fez percebeu que algo estava errado, mas já não foi a tempo de o corrigir. O que torna ainda mais irónico o cameo que Gus Van Sant inseriu dele próprio, imitando o original, levando uma valente descompostura de uma indivíduo igualzinho a Hitchcock.
Não é por isso de estranhar que, mesmo passados cinquenta anos, o Psycho original continue a ser o mais ajustado, tenso e assustador, o padrão quase perfeito do cinema de suspense. Nele introduziram-se alguns conceitos-chave do género e desenvolveram-se outros tantos. A readaptação não passa de uma cópia kitsch daquele que é para muitos o melhor filme de Alfred Hitchcock, falhando em toda a linha. O britânico fez o filme que sabia; Van Sant fez o que pôde.
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A crítica a ambas as obras pode ser encontrada na segunda parte deste artigo.
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A crítica a ambas as obras pode ser encontrada na segunda parte deste artigo.
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