quarta-feira, 27 de março de 2013

A Última Vez Que Vi Macau (2012)

Nunca fui a Macau.

O filme começa e surge logo, quase a matar, Cindy Scrash - a Irene de Morrer Como Um Homem - a cantar You Kill Me para a câmara. A câmara, leia-se, o público. Andam uns tigres pelo fundo, enjaulados, e percebe-se que a cena tem qualquer coisa de cabaret. Uns planos depois, um jogo de paintball - uma guerra fictícia -, em que um dos participantes acaba morto. E põe-se Guerra da Mata a caminho de Macau, sem perceber muito bem o porquê da coisa. Agora pergunta o caro leitor que esquisitice em forma de filme será esta. E pergunta muito bem, que o caso não é para menos. Trata-se, afinal, de A ÚLTIMA VEZ QUE VI MACAU, de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, fita fabulosa e incrivelmente singular na sua construção.


Continuando onde ficamos, mete-se Guerra da Mata em Macau, a pedido de Cindy - que aqui é Candy, a piscar o olho à do Andy Warhol -, que teme pela sua vida. A moça envolveu-se com os homens errados e viu-se numa alhada. E não é que Guerra da Mata é o único em quem ela confia para a salvar? O gostinho a film noir - o whiskey, as sombras, a própria donzela em apuros - que fica desses momentos iniciais permanecerá durante o resto do filme. Esta Macau - a que Guerra da Mata ao princípio não reconhece e que Rodrigues nunca visitara antes - é, na sua essência, um cemitério de filmes e estrelas, uma terra com o espírito intimamente ligado ao Cinema. Não se estranhem, por isso, as meias de Jane Russell - que morreu enquanto se filmava A Última Vez Que Vi Macau - a flutuar à entrada da gruta dos piratas, ou a música - retirada de Macao, de Josef von Sternberg - com que Candy abre a estória.

É também através dessas referências cinematográficas, sempre criteriosas - não fosse João Pedro Rodrigues o realizador que disse, numa entrevista, não gostar de filmes de citações -, que se desmonta a obsessão de conhecer a cara aos protagonistas. Não chega a haver uma materialização, no sentido convencional, do sujeito: vêem-se mãos e pés, ouvem-se vozes incorpóreas que narram, reflectem, planeiam e explicam. Da mesma forma, não se assiste às mortes das personagens, nem às suas metamorfoses. Essa ideia de construir uma casa com paredes e telhado - as convenções, os cânones do(s) género(s) -, mas não lhe dar recheio - as caras, as mortes - será, porventura, o mais desconcertante para o espectador em A Última Vez Que Vi Macau. Porque se quem vê caras não vê corações, quem não as vê tem, normalmente, ainda mais dificuldade em os perceber.

O documentário que não o é - mas que poderia tê-lo sido, olhando para a curta Alvorada Vermelha - e o noir sem enchimento: João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata manejam habilmente as regras e expectativas, filmando uma terra que, existindo, não passa de uma ilusão. E que, exactamente por ser uma miragem - com os néons, os casinos, os fogos-de-artificio, o exotismo de uma figura que dá pelo nome de Madame Lobo e as gaiolas douradas -, custa ainda mais a abandonar. O que se consegue em A Última Vez Que Vi Macau, com os seus mistérios por desvendar e caminhos por percorrer, é realmente algo de único.

Nunca fui a Macau. Minto, já lá estive. E gostei imenso do que vi.


Título original: A Última Vez Que Vi Macau (França/Macau/Portugal, 2012)
Realizador: João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata
Argumento: João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata
Intérpretes: João Rui Guerra da Mata, Cindy Scrash, João Pedro Rodrigues
Género: Crime, Documentário, Drama, Fantasia, Mistério
Duração: 85 minutos




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