Não me lembro de alguma vez ter começado uma resenha neste espaço - ou noutro qualquer, verdade seja dita - pelos próprios títulos. Que é como quem diz, pelo início em si. Também por aí se verá a rara habilidade de Pedro Almodóvar, do qual sou confesso admirador, enquanto autor, avançando logo com uns néons coloridos - e quase epilépticos - ao som de um Für Elise latino. É nesse tom alegre que abre, e se prolonga, LOS AMANTES PASAJEROS, vaudeville aeronáutico de uma tripulação que voa, literalmente, em círculos.
E voa-se em círculos porque não se pode aterrar. Ou porque, aterrando, não haveria filme. Assim, temos um grupo de pessoas, passageiros da primeira classe, hospedeiros e pilotos, presos num mesmo espaço; e, já agora, a um mesmo destino. E enquanto se procura uma solução para o problema, vão-se entregando ao deboche algo kitsch urdido por Almodóvar - apenas ele conseguiria imaginar algo assim -, cenas tão insólitas que, encaixadas, só poderiam fazer sentido. E que, isoladas, não fariam nenhum. Vejam-se, por exemplo, as primeiras cenas na cabina: a torrente de disparates disparados por um dos hospedeiros, amante do piloto, que, incapaz de mentir, admite toda a trapalhada aos passageiros que irromperam por ali adentro. Segue-se uma outra confissão do co-piloto - todos muito honestos -, pretenso heterossexual, que tentou uma felação ao piloto, sem sucesso. Parecendo que não - e admito que, sem o ver, ainda menos sentido fará a sequência conforme descrita -, as peças funcionam em conjunto.
De resto, as principais características do Cinema almodovariano mantêm-se: a cor rica e vibrante, as personagens extravagantes - e há-as para todos os gostos, da vidente virgem aos hospedeiros gays, passando pela dominatrix veterana e paranóica -, a exploração sexual, simultâneamente saudável e viciada. E viciante, que, às tantas, já ninguém quer parar. E confunde-se tudo numa orgia, entre gente acordada e adormecida - fabuloso paralelismo entre os casais, que invertem a posse da consciência na relação -, gente sóbria e intoxicada. Com o som a rebentar nos limites do volume, envolvendo tudo e todos naquele avião possivelmente condenado.
Depois dos labirintos hitchcockianos de uma outra Toledo - e, nem de propósito, o avião sobrevoa a mesma cidade quando se conhece o imbróglio -, uma comédia a romper com os dramalhões aos quais se havia colado. Obra menor ou não - e haverá sempre quem sinta a necessidade de a catalogar com tão injusto rótulo -, é refrescante dar de caras com um filme tão descaradamente vivo e alegre, com momentos tão burlescos como três hospedeiros efeminados a interpretarem um número de cabaret de I'm So Excited, das Pointer Sisters, em pleno corredor da primeira classe. Ou o próprio final, uma nova orgia, desta feita de espuma, que congela o último plano, um chapéu de piloto lançado para o ar. Los amantes pasajeros abraça, em toda a sua despreocupação, a pulsão idiossincrática de Almodóvar, a vontade de transgredir convenções sociais ultrapassadas. Existissem mais filmes assim, tão dados ao nonsense do Cinema em si, e o Mundo seria um lugar melhor. Se não, pelo menos um mais feliz.
Realizador: Pedro Almodóvar
Argumento: Pedro Almodóvar
Intérpretes: Javier Cámara, Carlos Areces, Raúl Arévalo, Lola Dueñas, Cecilia Roth, Antonio de la Torre, Hugo Silva, José Luis Torrijo, José María Yazpik, Guillermo Toledo, Blanca Suárez, Antonio Banderas, Penélope Cruz
Música: Alberto Iglesias
Fotografia: José Luis Alcaine
Género: Comédia
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