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primeira parte deste artigo visa uma comparação geral, no tempo e no conteúdo, entre ambas as obras.
PSYCHO, de Alfred Hitchcock (EUA, 1960)
PSYCHO pode parecer um objecto algo estranho na filmografia de Hitchcock, não pela temática que aborda e pelos motivos que utiliza - recorrentes noutras obras do realizador -, mas sim pelas circunstâncias da sua produção e o espaço muito sui generis que ocupa na História do Cinema. A trama, passada rapidamente em revista, já todos a conhecem: uma rapariga (Janet Leigh, nomeada para o Oscar de Melhor Actriz Secundária) rouba 40 mil dólares a um cliente do seu patrão, e, numa noite de intempérie, procura abrigo no infame Bates Motel. A rapariga (e, já agora, o dinheiro) desaparece e a busca leva vários dos interessados no seu paradeiro (a irmã, o namorado e o detective privado) a esse mesmo motel. É tudo muito hitchcockiano, explorando conceitos-chave da moralidade e da culpa e incorporando elementos de mistério e tensão. Aliás, a marca do autor faz-se sentir em vários momentos da fita: a protagonista loira, a fixação por pássaros, o espectador como voyeur, criminosos alvo da empatia do público (tanto Marion Crane como Norman Bates, salvo as devidas distâncias), a transferência da culpa entre personagens e a relação conflituosa entre Norman e a Mãe. Mas, e retomando as circunstâncias em que foi produzido, é fácil atentar o carácter algo experimental de Psycho. Os estúdios não lhe concederam o mesmo financiamento que aos seus filmes anteriores e o orçamento ficou pouco abaixo do milhão de dólares. Hitchcock testava a possibilidade de criar um filme barato e rápido de filmar, mas que fosse, simultaneamente, apelativo para a audiência. Consegue contratar actores abaixo do seu salário normal e recorre a grande parte da equipa que trabalha na sua série televisiva Alfred Hitchcock Presents. Passada a pré-produção, põe-se a gravar.
A estrutura da fita é pensada para causar desconforto ao espectador. Em dois actos facilmente delimitáveis, a acção é sempre deixada em suspenso até ao último momento possível, precisamente quando acontece. O protagonismo feminino, dividido entre Janet Leigh e Vera Miles, contribui também para a sensação de estranheza: quando nos habituamos à primeira, ela sai de cena e faz-se entrar a segunda. Fora esse, há mais alguns mecanismos que ajudam a deixar o público em constante sobressalto; a impossibilidade de os detalhar a todos faz-me destacar o polícia à janela do carro de Janet Leigh (o gatilho que desencadeia a sua paranóia) e a casa dos Bates que observa, ominosa, o motel do topo de uma colina.
Cada visualização de Psycho permite encontrar novos prazeres - que vão desde a banda sonora composta por Bernard Herrmann aos títulos iniciais desenhados por Saul Bass - e dissecar mais uns quantos elementos da obra. Permite igualmente perceber que o marco do suspense realizado por Alfred Hitchcock resulta exactamente pela forma como foi filmado - o preto-e-branco impunha-se à cor - e pelos planos e cenas estudados ao detalhe. Assim, e com a patina que o foi envolvendo com o passar dos anos, Psycho é um clássico de pleno direito, exemplo canónico de como criar suspense e tensão num filme. Parte Cinema, parte ícone cultural (distinção reservada a poucas películas), é um excelente Hitchcock - sempre se deu bem com as suas experiências, veja-se o caso de Rope -, mas não o melhor.
PSYCHO, de Gus Van Sant (EUA, 1998)
Hollywood é uma máquina que por vezes se mastiga a si própria. Entre sequelas e remakes é costume que a qualidade caia consideravelmente em relação ao primeiro tomo das franquias, enevoando a sua memória. Atenta-se o caso deste PSYCHO, que se agrava pela tentativa de recriar o original quase plano-por-plano. Depois das sequelas na década de 80 - todas com Anthony Perkins e uma delas, inclusive, realizada pelo próprio - mais fracas mas divertidas, abriu-se a porta para que se fizesse uma readaptação do icónico filme de Alfred Hitchcock. A banalização da violência e o boom do Terror e do Thriller levaram a que a Universal financiasse o projecto em 60 milhões de euros e os avanços tecnológicos alcançados no seio da indústria permitiram pôr em prática algumas das ideias que Hitchcock tinha para o original - por exemplo, o establishing shot inicial de Phoenix.
A estória seria textualmente a mesma, actualizando-se as referências a dinheiro (fruto da inflação). Decide-se colorir a imagem com tons saturados e filmar quase tudo conforme os planos do original. Aqui e ali retoca-se a película, modificando algumas sequências e cortando outras. Feitas as contas, o resultado final só podia dar errado. E deu. Como a tecnologia não acompanhou a evolução da indústria e do público estranham-se muitas das cenas icónicas, que surgem aqui pautadas por um certo elemento kitsch - a queda de Arbogast pelas escadas provavelmente será o melhor exemplo (alguns anos antes tinha-se parodiado a cena em The Silence of the Hams, com Martin Balsam a fazer dele próprio), mas há também os casos da cena do chuveiro e de muitas outras - tornando-as sombras das que lhes serviram de inspiração e decalque.
Gus Van Sant não soube pegar no filme - a marca autoral não corresponde à de Hitch, nem será este o seu género de eleição -, e quando se apercebeu disso já nada podia fazer. Nota-se a luta constante por manter este Psycho fiel ao original, mas a verdade é que simplesmente se queda longe demais. Plano-por-plano, e plano depois de plano, manchou a memória de 1960, não conseguindo sequer gerar interesse em relação ao material do qual foi adaptado. O último plano de Norman Bates em ambos os filmes, a caveira justaposta à sua face, resume bem a película: Vince Vaughn tenta emular Anthony Perkins, mas, paradoxalmente, apenas serve para realçar as diferenças entre os dois; recorda-nos que estamos perante uma cópia modesta e mal executada, parente pobre do talento de Hitchcock, que sofre ainda mais por perder literalmente em todos os planos face ao primeiro filme.