quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Aimer, boire et chanter (2014)

Coube a Scott Foundas, crítico da Variety, uma das melhores descrições de Alain Resnais (e do seu Cinema): «If Resnais had gone into the culinary arts instead of the cinematic ones, then surely he would have emerged as a molecular gastronomist avant la lettre (...)». A frase parece-me especialmente feliz se vista à luz da última fase da carreira do cineasta francês - ou seja, a partir de meados da década de oitenta -, quando Cinema e Teatro se passaram a confundir mais frequentemente. AIMER, BOIRE ET CHANTER, a última obra de Resnais (entre nós, póstuma), segue essa tendência.


Não é invulgar que a última obra de um cineasta - e mais ainda, caso se trate de um grande cineasta como Resnais - cheire já um pouco a túmulo. E que se tente fazer dela a súmula de toda uma vida, um resumo de tudo o quanto ficou para trás. Escreva-se, em boa verdade, que Resnais não escapou à maldição; aliás, não creio sequer que lhe tenha querido escapar. Antes, soube jogar com ela, acolhendo-a, como já o tinha feito com Vous n'avez encore rien vu.

Fazendo um breve exercício de inversão cronológica entre os seus últimos dois filmes, fica a dúvida se Resnais sabia que Vous n'avez encore rien vu não seria o seu derradeiro projecto, que sobraria tempo para mais um. Passo a explicar: apesar de em ambas as obras a morte ser um tema recorrente, em Aimer ela é ainda iminente, algo por acontecer, ao passo que em Vous n'avez encore rien vu ela permeia grande parte da acção, servindo-lhe de mote (basta lembrar a personagem de Mathieu Amalric).

O ponto a reter será, talvez, que Resnais não tentou fugir ao seu destino (ao dele e, eventualmente, ao de todos nós). Em Aimer - e não será George Riley, o ausente-presente, o próprio Resnais? - empurra-o um pouco para a periferia, é certo, mas não o ignora; sabemos, desde o princípio, que só há maneira de fechar o filme: com um funeral. É esse o último plano que nos fica do Mestre francês, o de uma fotografia da Morte colocada sobre um caixão (o seu?) por uma jovem (a mesma de Vous n'avez encore rien vu?). É essa imagem que encerra o(s) capítulo(s) que Resnais inscreveu na História do Cinema - ele, a quem pertencem alguns dos momentos mais belos e importantes da Sétima Arte -, um aceno à sua mortalidade imediata.

Resnais, que provou a existência de diferenças basais entre ser um mero filmmaker ou um verdadeiro cineasta, soube acompanhar-se de gente leal e muito capaz nestas suas últimas viagens. Dos actores que marcam a sua obra, filmados em planos ora muito abertos, ora muito fechados, à cenografia e sonoplastia, houve a vontade de dar continuidade à qualidade que tão singularmente pautou o seu trabalho.

É em casos como este que o pró-forma de pontuar filmes (e, particularmente, este filme em concreto) se revela, além de absurdo, ingrato: desde logo, porque Resnais merece mais câmaras vermelhas do que as que eu lhe posso dar; depois, porque Aimer não é, nem de perto, nem de longe, um filme brilhante, muito menos um dos melhores do seu autor. Contas feitas, o Cinema ficou mais pobre sem Resnais; mas infinitamente mais rico por ter podido contar, durante décadas, com a visão deste grande - grande? enorme, E-NOR-ME! - artista.

[Alain Resnais morreu no passado dia 1 de Março, em Paris. Foi-se o cineasta, ficou a obra, esqueleto - e, sobretudo, alma - do que foi um dos obreiros mais incansáveis e interessantes da História do Cinema.]


Título Original: Aimer, boire et chanter (França, 2014)
Realizador: Alain Resnais
Argumento: Laurent Herbiet, Alain Resnais, Jean-Marie Besset (adaptado da peça de Alan Ayckbourn)
Intérpretes: Sabine Azéma, Hippolyte Girardot, Caroline Sihot, Michel Vuillermoz, Sandrine Kiberlain, André Dussollier
Música: Mark Snow
Fotografia: Dominique Bouilleret
Género: Comédia, Drama
Duração: 108 minutos


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