Vamos arrumar logo a questão e escrever que CLOUD ATLAS é um portento técnico. Nessa área em particular não restarão grandes dúvidas sobre o talento dos envolvidos - com excepção, talvez, de algumas caracterizações mais forçadas -, quedando-se as preocupações por outros domínios. Adaptar para o grande ecrã o romance de David Mitchell, já de si grandioso, revelava-se uma empresa megalómana e de complicada execução. A expectativa era grande em perceber o que aqueles três realizadores - que, na prática, acabam por ser apenas dois para mim, face à minha incapacidade para discernir as vozes individuais da dupla Wachowski - podiam fazer com seis histórias intrinsecamente ligadas e espalhadas por quase três horas de filme. Será que passavam no teste? A resposta variará entre a audiência, dependendo, por exemplo, da predisposição de cada um para aceitar o que se viu ou se está prestes a ver. Quanto a mim, leva nota positiva, apesar das várias falhas a que se expõe.
O objectivo, também ele de difícil alcance, passaria pela compreensão da Humanidade e das ligações invisíveis que se formam entre pessoas, uma mistura de reencarnação com os seis graus de separação. Numa Era Global, sob a insistência de que todos nós nos encontramos conectados, as seis narrativas que compõe o mosaico encontram-se em pontos de quiasma - alguns melhor definidos do que outros -, apesar da dispersão espacial e temporal, quer através de personagens partilhados, quer de registos biográficos que transitam de uma para outra. Os elementos em comum reforçam a ideia - repetida várias vezes durante a fita, não fosse alguém esquecer-se dela - de que cada acto tem consequências que se estendem para além das imediatamente visíveis. Quase evocando a velha história do bater de asas de uma borboleta poder causar um furacão nos antípodas.
Essa linearidade cósmica, quiçá kármica, manifesta-se, inclusive, nos sujeitos. Ao longo dos segmentos o mesmo intérprete vê-se frequentemente a braços com personagens em semelhante situação. Pegando em dois exemplos muito rápidos, Jim Sturgess dobra o papel de apaixonado, e Hugo Weaving é sempre vilão, chegando a personificar o próprio Mal num dos blocos. Só Tom Hanks - e, porventura, Jim Broadbent a um nível mais discreto - ensaia uma espécie de redenção ao longo da fita, ora avançando, ora recuando no espectro moral. Outrossim, tal derivação passa para o próprio filme. Quase como se os Wachowski e Tykwer quisessem dizer que a história da Humanidade também se faz pelo Cinema. Se um protagonista grita em 2012 por Soylent Green, no futuro há algo tirado quase textualmente de lá. Ou então a existência de uma Nurse Ratched num dos episódios, que parece um pastiche da obra de Milos Forman. De novo as asas de borboletas e os furacões.
Tom Tykwer, Andy Wachowski e Lana Wachowski têm os três créditos firmados a partir do final da década de 90. Entre eles são responsáveis por títulos como Lola rennt e The Matrix - que aqui se recria numa distopia sul-coreana -, entre outros, (re)vistos e bem presentes no imaginário cinéfilo de toda uma geração. Há, pois, uma tentativa em Cloud Atlas de versatilidade, tocando-se vários géneros, do drama à comédia, passando pela sci-fi, que culmina num blockbuster mais hábil do que o normal. A inteligência confunde-se, no entanto, com pretensão, tamanho é o desejo de produzir um objecto filosófico e analítico. Tivessem optado por algo ligeiramente mais simples e talvez o resultado fosse ainda mais satisfatório.
Muito já se escreveu sobre Cloud Atlas e ainda mais terá ficado por escrever. Só para acabar, que a resenha vai longa, fica a possibilidade de, num futuro, a Humanidade se converter em Unanimidade (estamos cada vez mais ligados), com direito a catecismos como «honor thy consumer». O Consumismo religioso, vigiado e mantido por um Estado autoritário, termina em Queda, e a gente do Antigamente passa a ser idolatrada como o deus do Agora. Volte-se, então, às borboletas e furacões.
Realizador: Tom Tykwer, Andy Wachowski, Lana Wachowski
Argumento: Tom Tykwer, Andy Wachowski, Lana Wachowski (baseado no romance de David Mitchell)
Intérpretes: Tom Hanks, Halle Berry, Hugo Weaving, Jim Broadbent, Jim Sturgess, Doona Bae, Ben Whishaw, James D'Arcy, Keith David, Xun Zhou, Susan Sarandon, Hugh Grant
Música: Reinhold Heil, Johnny Klimek, Tom Tykwer
Fotografia: Frank Griebe, John Toll
Género: Comédia, Drama, Ficção-Científica, Mistério
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