sexta-feira, 2 de novembro de 2012

«Estão vivos outra vez»

Hoje não se escreve aqui sobre filmes. Ou melhor, não se fala de Cinema, que, por vezes, a vida é um filme bem melhor do que a ficção. Mais interessante ainda é construir a nossa própria banda sonora. Para quem não sabe, os Ornatos Violeta, banda mítica do imaginário rock português, reuniram-se este ano para alguns concertos de celebração. Três concertos - Paredes de Coura e Coliseus - cedo passaram a cinco e depois a nove; isto de esgotar nove palcos em três meses é obra. Vi o concerto em PdC, emocionei-me, e ontem repeti a dose. Hoje há outro espectáculo, transmitido pela Antena 3, e pus-me a ouvir a emissão enquanto escrevo estas linhas. Vamos começar?


«O punk moda funk um dia vai voltar»

Comecemos pelo início, que é sempre mais bonito. Ouvi os Ornatos - eu e os meus colegas de blogue - pela primeira vez quando tinha catorze anos. Ainda puto, descobri aquela que viria a ser a banda que há mais tempo me acompanha nos leitores de música e com a qual mais me identifico. Não os cheguei a apanhar em actividade contínua, mas não me lembro quantas vezes já ouvi os seus álbuns. É algo estranho este saudosismo por algo que morreu há tão pouco tempo e tão perto de nós. Seis anos depois, ainda feito puto, assisti ao seu regresso em PdC, agarrado a alguns dos meus melhores amigos, e chorei feito uma Madalena naquela bela canção que dá pelo nome de Fim da Canção. Ontem foi tudo menos melancólico, as músicas do Cão! dão ar de farra à coisa. Mesmo assim, não consegui conter as lágrimas quando ouvi pela primeira vez o refrão da Deixa Morrer. No entanto, e como em PdC não se tocou (quase) nada do Cão!,  a letra que fazia mais sentido nestes concertos nos Coliseus era o refrão da Punk Moda Funk. Lá, em jeito de profecia, prometia-se que um dia se havia de voltar. Dez anos depois, cumpriu-se o que se prometeu ainda antes do fim.

«Isto é voltar sem dor nem mágoa»

Resumindo ao máximo, os Ornatos partem de um sentimento semelhante a um post-grunge português; a vida é uma merda, mas até que podemos ser felizes se fizermos algo por isso. Há rock (tudo muito alternativo para os parâmetros de hoje, normal para os de há 20 anos), há uma espécie de electrónica - aquela introdução da monolítica Tanque, que inaugurou o concerto no anfiteatro de PdC -, e mete-se funk, psicadélica, blues, jazz e mais umas quantas influências pelo meio. O estilo, esse, é muito sui generis e quase um género independente por mérito próprio, imitado por muitas das bandas portuguesas actuais. Do Cão! para O Monstro Precisa de Amigos (excluindo as raridades/b-sides/ inéditos/seja-o-que-for) nota-se um incremento de melancolia, uma sensação de amor que se perde. Não que o sentimento não estivesse presente no primeiro álbum de estúdio do conjunto, até porque é omnipresente na obra dos Ornatos, mas apontava-se mais para a festa, com ritmos mexidos e uma injecção maior de funk. Se em Cão! tínhamos, e falo no plural porque não consigo deixar de pensar que estas músicas pertencem um pouco a todos nós que as ouvimos, pérolas como um Crime à Minha Porta ou A Dama do Sinal, O Monstro aumentava a parada a nível dessa sensação de perda emocional com objectos desoladores como Chaga ou a própria Tanque. A alegria surge há medida que o álbum segue o seu caminho, mas fica sempre tudo mais próximo da catarse do que da felicidade.
Não será por isso de estranhar que os Ornatos Violeta se tenham separado após doze anos de actividade "oficial" (chamemos-lhe isso, à falta de melhor expressão), corria o ano de 2002. Estavam exaustos, dizem eles agora, e sem qualquer perspectiva de futuro para uma banda que os contivesse a todos. Nos dias que correm, fala-se que faltou editar um terceiro álbum de estúdio, o quase mitológico Monte Élvis, mas é impossível não divagar, e pensar que as músicas d'O Monstro, o último álbum de estúdio lançado durante os seus anos de actividade contínua, batem certo em quase todos os pontos com a história dos próprios Ornatos. Enquanto escrevia esta frase ouvia pela rádio a tal Chaga, uma das minhas preferidas, que dita que a dor lembra que há um fim. De facto, e como todas as grandes bandas que já não o são, os Ornatos Violeta encontram-se rodeados por uma aura profética, que, ouvida à distância, é uma espécie de "eu bem te disse", mesmo que a intenção original no momento da composição nem passasse por aí. Também se pode dar o caso - e certamente se dará para muitas pessoas - que os fãs sintam a necessidade de encontrar uma justificação para o fim do conjunto nas suas canções. De qualquer maneira, os sinais estão lá, é só saber onde, e como, os procurar.


«A cidade está deserta»

Depois da magistral abertura em PdC, com a introdução semi-electrónica correndo largos minutos, deixando o público expectante no limiar de uma quebra emocional, decidiram começar as festas (como eles lhes gostam de chamar) nos Coliseus com o epílogo declamado por Vítor Espadinha no single Ouvi Dizer, levado recentemente ao grande público por um concorrente do programa Ídolos. Ironicamente, enquanto se diz que «A cidade está deserta» a audiência do Coliseu vai ao rubro, aplaude, incentiva, também ela declama aquele poema que lida com o desaparecimento do Amor; se as ruas estivessem vazias suspeito que ninguém daquela(s) plateia(s) se importaria. A banda entra em palco, Manel Cruz solta um «Bute nessa?» que nos causa arrepios e começa uma viagem de três horas pela memória colectiva de quem enche aquele espaço. Uma montanha russa emocional, com agradecimentos - não sei se mais da parte da banda do que da do público - no final de quase cada música, que atinge um dos picos na Deixa Morrer; aquele refrão, presságio do que veio, aquele «E aparece assim, acendeu-se a luz, estão vivos outra vez», leva a que a audiência quase silencie o palco com palmas para que depois se peça, suprimindo qualquer esperança, que deixem o seu Amor morrer. É difícil esconder o que nos vai na cabeça naquele momento e o pranto generaliza-se pela plateia. Os músicos cumprimentam-se em palco, Manel beija Nuno Prata e Peixe, Kinörm chega a chorar se vê alguém mais emocionado, Elísio Donas é todo ele sorrisos. É complicado perceber quem está a gostar mais daquela reunião, se a banda, se o público. Tocam-se pequenos tesouros como Notícias do Fundo, o inédito Gato de Dois Chifres, Coisas ou a adolescente 1 Beijo=1000. A audiência, que em PdC chegou a cantar no final do concerto, já sem a banda, a Punk Moda Funk vai à loucura quando Manel Cruz diz pela primeira vez que quer mijar - já em Débil Mental não negavam a sua natureza vulgar -, levando a que o vocalista se entusiasme com uma música que ele próprio confessou já não suportar. E é já altura dos encores.

«Pára-me agora»

Apesar do que muitos acham, nem os Ornatos são só o Manel Cruz, nem o Manel Cruz é só dos Ornatos. Ambos estão bem estampados um no outro, mas é o próprio Manel o primeiro a elogiar Nuno Prata («O fim dos Ornatos também teve coisas boas, como a explosão artística do Nuno Prata. Eu já o tinha como baixista, mas ele agora multiplicou-se.») ou a escrita de Peixe em músicas como Deixa Morrer, que Manel, num acesso de humildade, confessa ser a sua favorita do certame. Toca-se a Capitão Romance com Peixa na guitarra portuguesa (mas sem Gordon Gano) e as "meninas" Raquel e Marta. Por essa altura já se alcançou a catarse: o público, multidão heterogénea que vai desde pré-adolescentes a quarentões que assistiram ao início dos Ornatos, reconciliado com a sua juventude, pula e grita as letras, a banda, com os problemas entre os seus elementos sanados, perde anos e entusiasma-se com as suas próprias músicas. Quando chega a altura de entoar as mágicas O.M.E.M. ou O Amor É Isto o descontrolo é tal que se berra as letras como se se tratassem de palavras de ordem. Sucedem-se objectos lindos como Homens de Princípios («Aquela mão,  segue a minha mão. Vagueia só, segue a condição. Um dia sem, logo fico com. Mulher é deus, dançar é bom.») e Tempo de Nascer e o tempo passa sem que se faça notar. Já se dizia na 1 Beijo=1000 que a ironia da câmara lenta é não dar tempo para pensar. A cabeça anda a mil, passa tudo demasiado depressa. Manel Cruz e companhia têm dificuldade em controlar as emoções. Também eles estão assoberbados pelo que se encontra à sua frente.
O Humanismo - merece maiúscula - em primeiro plano. Não se projecta nada no fundo do palco, não há vídeos nem ecrãs gigantes. Fazem-se uns simples jogos de luzes e deixa-se que as músicas - e os músicos, já agora - falem por si. Manel, acompanhado pela sua guitarra acústica, canta a "sua" Chuva num dos momentos mais intimistas do espectáculo. Eles são os Ornatos Violeta e sabem que não precisam de artifícios para deixar quem gosta deles satisfeito. Tanto que quando chega a hora da eléctrica Pára-me Agora pedem que se deixe algumas pessoas da audiência subirem ao palco para cantarem em tom de provocação as palavras que dão nome ao tema. Aquele gloriosa confusão de vozes, com a banda abraçada aos fãs, constitui por si só um dos momentos mais intensos - e, por sinal, um dos melhores também - de todo o concerto. Eles desafiam que os parem; nós sabemos que não é possível.


«Chegámos ao fim da canção»

Só que sabemos que aquela celebração há-de chegar a um fim. Podemos atrasar o tempo, mas não o podemos parar. A discografia dos Ornatos perdeu a vertigem característica da sua adolescência e ganhou maturidade. Nunca uma banda portuguesa foi alvo de tamanho culto, ainda para mais já bem depois de ter acabado. Manel Cruz brinca que o ponto alto da vida de um grupo é ter os seus cachecóis da candonga; falando mais a sério, é sinónimo da enorme popularidade gozada pelo conjunto portuense. Falam abertamente de antigos integrantes da banda, produtores que contribuíram para a sua carreira e gente que já não se encontra entre eles (nós?). A honestidade destes Ornatos é desconcertante e, provavelmente, não seria possível há uma década. O choque chega com a Fim da Canção. O primeiro verso anuncia o que irá acontecer: aquela festa está prestes a terminar. Mas ainda há tempo para mais uma música, uma das mais belas do seu repertório. E a audiência canta e rejubila.
À uma e meia da manhã, depois de virar de novo a dor e o amor para dentro, é hora de ir para casa como se não tivéssemos acabado de assistir a um acontecimento marcante. Mas nós sabemos bem aquilo que acabamos de ver. As ruas da cidade - daquele Porto que também é deles - voltam a inundar-se de gente e separa-se a multidão que minutos antes, e durante horas a fio, se juntou para homenagear os Ornatos Violeta. Manel Cruz despede-se com um «até sempre», mas sabemos que será difícil voltar a ouvir aquelas canções ao vivo tocadas por aqueles cinco senhores da música portuguesa. Não caio na tentação de lhes chamar génios, mas pouco falta. Ao todo, ouvi três dos concertos - dois in loco e o último pela Antena 3 - e, escrevendo estas linhas finais ao som da última Fim da Canção, tenho a noção que os Ornatos finalmente tiveram a despedida que mereciam; dez anos depois do devido, mas tiveram. Depois de PdC, depois dos Açores, depois de Lisboa, a festa fez-se no Porto e eu, que também os vi no festival minhoto, não desejava ter dito o meu adeus aos Ornatos em nenhum outro lugar. Entre vénias e abraços, despedem-se do público. Os Ornatos Violeta vieram morrer a casa. Só que como tudo neste Universo, do qual também são filhos, nada é eterno, nem mesmo a morte. Ontem fui eu, hoje foram outros, daqui a uma década pode ser que as gerações vindouras venham a ter a oportunidade de descobrir estas pérolas da música portuguesa. A lição a tirar desta festa é que a esperança é mesmo a última a morrer.

«Se o meu peito diz coragem, volto a partir em paz.»

António Tavares de Figueiredo

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