sábado, 17 de novembro de 2012

Os cavalos do menino Noé

Reza a história que a personagem do Talhante nasceu na primeira vez que Gaspar Noé pôs os pés em França. Criado na Argentina, o menino visitava o país da mãe, e o pai, por algum motivo que escapa à compreensão (à minha, pelo menos), decidiu dizer-lhe que por aqueles lados se comiam cavalos. Bem, não terá dito exactamente que se tragava o bichedo, mas que se consumia a sua carne. Ora, para o menino Noé aquilo era tudo muito estranho, na terra dele não se comiam cavalos. A cabeça dele pôs-se logo a dar voltas e criou a personagem que o acompanharia em mais filmes até ao momento. Nasceu naquele momento o Talhante sem nome, introspectivo e violento, com queda filosófica para monólogos solipsistas e narrações em voz-off.


A obra de Noé será, de resto, uma ode à agressão - das personagens e dos sentidos - e um produto da progressiva dessensibilização da sociedade em relação à violência. Já em CARNE  (*), a sua primeira aparição, o Talhante (brilhantemente interpretado por Philippe Nahon) surgia como uma espécie de anjo da vingança moralmente ambíguo, atacando quem julgava ter violado a filha autista que também ele desejava. Em SEUL CONTRE TOUS, extensão do filme anterior, voltava a revelar os traços quase niilistas que havia evidenciado na curta-metragem; voltamos a encontrá-lo em IRRÉVERSIBLE, derrotado e colhendo os frutos do que semeou com sangue.

A lição a tirar, se é que chega a haver alguma, é que nunca sabemos quais as consequências do que dizemos aos outros. Não imagino que o pai de Gaspar Noé algum dia pensaria que ao afirmar ao filho que os gauleses comiam cavalos estaria a contribuir para a criação de uma das partes mais importantes da sua obra. A verdade é que através da imaginação - e do kubrickiano 2001: A Space Odyssey, segundo o próprio conta - o menino Noé, agora um homem feito, tornar-se-ia um dos realizadores mais criativos da sua geração, pese embora as temáticas e narrativas controversas que aborda. Tudo graças aos hábitos alimentares de um povo.

António Tavares de Figueiredo

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(*) - Acerca de CARNE e SEUL CONTRE TOUS bastará escrever que são o exemplo perfeito de como condensar e limitar uma história ao essencial sem com isso prejudicar o seu desenvolvimento. O que falta ao primeiro em profundidade é compensado com subtileza, do alto dos seus quarenta minutos. Noé recupera a tradição de que melhor do que mostrar é insinuar e deixar a audiência fazer as contas. Isso, e enojá-la com planos gráficos de matança; o início de Carne não é para estômagos fracos.

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