A linha que separa a loucura da sanidade é tão ténue que amiúde se torna indistinguível e cessa de existir. Aí, o sábio torna-se um pobre de espírito e o perturbado passa a iluminado. Nem sempre é discernível em qual das categorias, já de si pouco estanques, se encaixa alguém extraordinário. O conceito não é novo, nem a abordagem que Aleksandr Gornovsky e Karen Shakhnazarov lhe dedicam, mas WARD NO. 6 acaba por oferecer uma visão diferente sobre a questão. Em jeito de documentário - falso, mas que podia ser mais verdadeiro do que alguns que declaradamente o são, o que nos leva a perguntar onde se devem traçar os limites do género - começa-se por entrevistar meia-dúzia de internados num hospício soviético (a Rússia parece não ter chegado ainda ao local). Falam da sua vida na instituição e do seu antigo director. Proeminente psiquiatra de larga reputação, vê-se preso numa pequena cidade que, segundo ele, é incapaz de apreciar cultura e arte. Criatura de hábitos fixos - não dispensa a sua leitura diária (clássicos da literatura) nem o copo de vodka após o almoço - entra numa espiral descendente rumo à alienação quando conhece um paciente que partilha da sua visão. A figura, que lhe surge algo enquadrada na imagem de profeta, faz dele seu apóstolo e leva-o a abandonar a vida de médico.
Shakhnazarov, um dos mais influentes cineastas russos da sua geração, director-geral da Mosfilm (histórica produtora responsável por obras de gente como Sergei Eisenstein, Andrei Tarkovsky e Akira Kurosawa, entre outros), oscila entre o falso documentário e uma narrativa mais convencional. Tudo muito diegético, excepção feita à sequência da visita do Doutor e do seu vizinho à capital, barulhenta e desorganizada, e pachorrento. A lentidão e passividade da fita imitam as da vida rural e custam a passar. Às tantas, também o público, "preso" à cadeira, restringido àquela sala de cinema que torna real a ficção de Chekov que passa no ecrã, sente a dor do médico. Quando há pouco para fazer os ponteiros do relógio tendem a mover-se mais devagar. Não é o melhor filme de Shakhnazarov (quanto ao outro realizador, que confesso não conhecer, não posso adiantar o mesmo) e pela densidade e rigor pode ser difícil de assistir para quem estiver formatado para um Cinema mais ocidentalizado, mas Ward No. 6 revela-se uma obra competente e sólida, da qual vale a pena recordar um par de cenas potencialmente memoráveis - vem-me à memória, por exemplo, o baile no final do filme. Como na vida, é quando o cansaço se começa a manifestar que se perde a vontade de distinguir entre o real e o imaginado.
Realizador: Aleksandr Gornovsky, Karen Shakhnazarov
Argumento: Aleksandr Borodyanskiy, Karen Shakhnazarov (baseado no conto de Anton Chekhov)
Intérpretes: Vladimir Ilin, Aleksey Vertkov, Aleksandr Pankratov-Chyornyy, Evgeniy Stychkin, Viktor Solovyov
Música: Evgeny Kadimsky
Fotografia: Aleksandr Kuznetsov
Género: Documentário, Drama
Duração: 83 minutos
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